A forma como o poder político lida com aquele que é considerado o quarto poder – a comunicação social – revela que os governantes são mais propensos ao elogio, ainda que meramente servil, do que à crítica. Uma verdade que encontra respaldo na natureza humana.

Há alguns anos escrevi o livro Segredos do Império da Ilusitânia: a Censura na Metrópole e em Angola e, face aos inúmeros exemplos que a investigação me permitiu recolher, acusei o Estado Novo de falta de autenticidade. Durante quase meio século, o lápis azul da censura – qualquer que fosse a designação do organismo censor – encarregou-se de controlar os meios da comunicação social. Por isso, afirmei que Salazar, no que concerne ao âmbito da informação, norteou a atuação do regime por dois princípios.

O primeiro princípio pode ser sintetizado na máxima: «o que parece é». Daí a escolha da palavra «Ilusitânia» porque Portugal é o nome atual da antiga Lusitânia e, durante o Estado Novo, a verdade era escondida ou tapada pelo manto obscuro da ilusão. A verdade oficial que, por conta do adjetivo, deixava de ser verdade. Os carcereiros das ideias não se limitavam a cortar, total ou parcialmente, os conteúdos jornalísticos. Sentiam-se no dever de fazer sugestões. Tudo a bem da Nação. Que, no fim de contas, não passava do Estado.

O segundo princípio não anda longe da frase: «só existe o que se sabe que existe». Por isso, quando em finais de 1967 os arredores de Lisboa foram fustigados por chuvas e cheias devastadoras de vidas e colheitas, o Governo decidiu proibir a continuação e a divulgação pública da contagem do número de mortos. Uma contagem que, segundo o Diário de Notícias de 20 de novembro, já ia em 427 mortos, com a agravante de continuarem a aparecer cadáveres, como noticiava A República que, na edição de 30 de novembro, atualizava o número de vítimas mortais para 436.

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Convirá, no entanto, lembrar que, nesse mesmo livro, provei que a censura era um fenómeno antigo em Portugal e que não tinha terminado na fase posterior ao 25 de Abril de 1974.

Afinal, tal como a corrupção no Brasil, a censura em Portugal é uma senhora de idade, embora se movimente com imensa agilidade.

Chamei, aliás, a atenção para a autocensura a que, depois do regresso à democracia representativa, alguns profissionais da comunicação se viam obrigados como forma de garantirem os seus postos de trabalho. Uma realidade que algumas idas à Hemeroteca ajudarão a compreender, tal a frequência de despedimentos e saneamentos que atingiu o jornalismo.

Ora, a decisão agora conhecida para que a Autoridade Nacional de Proteção Civil (ANPC) seja o canal informativo sobre os incêndios no país constitui mais um exemplo daquilo que atrás ficou escrito. Trata-se, obviamente, de uma lei da rolha destinada a calar quem está no terreno. O calor – mais em sentido real do que figurado – dos incêndios não é bom conselheiro. Há que refrescar a informação no sossego climatizado dos gabinetes. Uma verdade a exigir intermediação. Por isso, embora os Comandos Distritais de Operações de Socorro (CDOS) não estejam obrigados ao silêncio, os dois briefings diários da ANPC serão os momentos destinados à transmissão da realidade vivida a algumas centenas de quilómetros de Carnaxide. Basta resolver os problemas com as comunicações.

Uma acusação que a ANPC e o Governo não aceitarão. Sentir-se-ão atingidos na honra e dignidade. Uma reação de que a História conhece múltiplos exemplos. Daí que a adjunta nacional de Operações não tivesse demorado a rejeitar “liminarmente” a hipótese de se tratar de “qualquer lei da rolha”. Segundo ela, tudo não passa de “um procedimento de exceção para uma situação de exceção”. Por isso, os portugueses podem ficar descansados. Mal termine a época dos incêndios, os oficiais dos bombeiros passam a dispor do direito à palavra.

Mudar a cor do lápis não significa acabar com a censura. Rosa, mesmo sem ser choque, continua a deixar marcas no papel. Em choque devem estar alguns dos que passaram pelo palácio cor-de-rosa do Largo do Rato.