Na conjuntura pós-25 de Abril, quando se iniciou o processo de legalização dos partidos políticos, a conjuntura revolucionária marcada pela acentuada dicotomia esquerda-direita apontava para que o sistema de partidos assumisse a figura de um camelo, com as duas bossas correspondendo a ideologias opostas. De facto, apesar da estratégia traçada por Álvaro Cunhal contar com o apoio de uma parte significativa do MFA, o Partido Comunista Português (PCP) não teve tempo para alimentar a esperança de que o sistema de partidos assumisse a figura de um dromedário, ou seja, que, à boa maneira soviética, só tivesse uma bossa. Obviamente de esquerda.

Porém, os sucessivos atos eleitorais, sobretudo depois da revisão constitucional de 1982 e da adesão à Comunidade Económica Europeia em 1986, encarregaram-se de provar que, efetivamente, o sistema estava a evolucionar para a figura do dromedário, mas não no sentido almejado pelo PCP.

Na verdade, se a circunstância de a governação ser liderada apenas pelo PS ou pelo PPD/PSD poderia apontar para a existência de duas bolsas, as políticas levadas a cabo por ambos os partidos iam mostrando que, bem vistas as coisas, apenas havia uma bossa enorme que ia enchendo ou esvaziando, de forma alternada, à esquerda e à direita, mas sempre dentro dos seus contornos da social-democracia. Aliás, numa dessas circunstâncias, a homogeneidade foi de dimensão tal que permitiu a formação de um Governo de Bloco Central.

Uma realidade que a geringonça de António Costa não alterou de forma profunda porque, malgrado assentar na dicotomia esquerda-direita, o PS não aceitou partilhar pastas ministeriais com o BE e a CDU e usou a governação para ir esvaziando as pequenas saliências à esquerda da bossa. De igual forma, o surgimento do Chega e da Iniciativa Liberal também não alterou significativamente o status quo e o sistema partidário continuou a assemelhar-se a um dromedário com uma bossa enorme no centro do dorso e algumas pequenas saliências à esquerda e à direita, mas insuficientes para assumirem a condição de bossas.

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No entanto, a forma desastrada como António Costa e o seu – no sentido lato e restrito – Governo delapidaram a legitimidade de voto que os portugueses tinham atribuído nas urnas ao então líder do PS criou condições para que a ideia e a figura do camelo voltassem a merecer reflexão. Depois da demissão do Governo, a crescente intenção de voto à direita revelada pelas sondagens, conjugada com a quase certeza de que nenhum partido irá lograr maioria absoluta nas legislativas que se avizinham, indiciou que a dicotomia esquerda-direita estava de volta. Uma realidade a que não foi estranha a revisitação da Aliança Democrática (AD). Só que, na conjuntura presente, há um dado novo: o previsível – e acentuado – crescimento eleitoral do Chega.

Dado que, por força da posição sucessivamente repetida de Luís Montenegro de não aceitar acordos com o partido de André Ventura, poderá vir a criar um camelo, mas de uma espécie nova. Um camelo com três bossas. Uma mais à esquerda, mas com tendência a crescer para o centro. Outra ao centro, de dimensão semelhante, mas com o rebordo direito a encolher. Finalmente, à direita, uma bossa de dimensão inferior às anteriores, mas com direito a reclamar essa condição, ao contrário de outras saliências à esquerda que, malgrado a boa comunicação social de que gozam – sobretudo uma delas – continuam a não justificar esse estatuto. Uma prova de que não é bossa quem quer, mas quem os eleitores desejam.

Na natureza, as espécies que não conseguem adaptar-se às alterações do ambiente acabam por desaparecer. Pelo contrário, a natureza humana revela capacidade para se adaptar às alterações do meio, embora prefira adaptar o meio às suas caraterísticas.

Por isso, mesmo que o dromedário evolucione para um camelo de três bossas, como a imagem corresponde a uma criação humana, é seguro que alguma solução irá ser encontrada. A normalidade não demorará a ser reposta. O regresso ao camelo de duas bossas parece inevitável.