São poucas, quase raras, as vezes em que as auditorias do Tribunal de Contas acabam a dar boas notícias. O mais frequente — para mal do dinheiro dos contribuintes e da própria integridade do Estado — é descobrirem, exporem e alertarem para esquecimentos e despesismos, malabarismos de gestão, falhas de liderança, estratégias danosas, atrasos na execução de boas práticas. Falhas e insuficiências que atravessam autarquias, empresas públicas e uma lista imensa de entidades na alçada do Estado. Todos são escrutinados, mas o certo é que nem todos saem do exame com nota positiva.

Esta semana houve mais uma a merecer a reprovação do Tribunal de Contas: a Autoridade Nacional de Proteção Civil. E a lista de problemas detetados pela auditoria é extensa — e preocupante. Começa por dizer que “persistem procedimentos inadequados”, tanto no controlo financeiro como na gestão de recursos. Critica a “grande rotatividade dos cargos de direção e de coordenação” em 2017 que se “refletiu na operacionalidade dos serviços”. Denuncia a inexistência de manuais de procedimentos em diversas áreas. Expõe divergências nos dados e inconsistências nas contas, onde encontra falta de transparência, e destaca fortes sinais de desarticulação entre a Proteção Civil e outras entidades com as quais trabalha, como é o caso das associações de bombeiros. E, entre outras falhas e insuficiências, recorda que já havia uma lista de recomendações feitas pelo próprio tribunal em 2016 que a Proteção Civil só acolheu parcialmente, ignorando ou adiando tudo o resto.

Expostos os problemas, o relatório de auditoria termina com novas recomendações. E pede o que deveria ser óbvio: “informação escrutinável e suscetível de ser auditada”, respondendo a critérios tão simples como objetivos operacionais, custos, riscos, indicadores, metas, entidades responsáveis e datas de concretização. Um pedido dirigido não apenas a quem gere a Autoridade Nacional de Proteção Civil, mas também (e ainda com mais detalhes) a quem a tutela: o ministro da Administração Interna.

Talvez não fosse preciso esta auditoria para perceber que algo não estava — e, pelos vistos, continua a não estar — bem na Proteção Civil. Talvez um ministro não devesse esperar pelos recados de uma auditoria para saber o que lhe falta fazer. Mas talvez o Tribunal de Contas esteja só a confirmar algo de que já se suspeita há algum tempo: de uma ineficiência de gestão e uma descoordenação de meios que se terão refletido, por exemplo, nas falhas e dificuldades gritantes com que as múltiplas equipas se comportaram nos mais recentes combates aos fogos no verão do ano passado.

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Não sei, por isso, o que me choca mais: se é ver expostas numa auditoria do Tribunal de Contas tantas falhas numa entidade que tem a missão de proteger e socorrer as populações de acidentes graves e catástrofes, se é perceber que as recomendações que o mesmo tribunal já tinha feito (para garantir que a Proteção Civil cumpriria eficazmente o seu trabalho) foram, na sua maioria, ignoradas ou adiadas. Isto significa que os problemas já estariam identificados há, pelo menos, dois anos. E que, nessa mesma altura, foram propostas (e pedidas) soluções que, a serem executadas em devido tempo, talvez tivessem poupado o país a tantas perdas.

Mas não foi o que se viu. Basta recordar o que aconteceu no início do ano passado, quando a Autoridade Nacional de Proteção Civil nomeou 30 chefias em quatro dias, entre 31 de março e 3 de abril. Embora a maioria dos despachos de nomeação fosse para reconduzir ou promover responsáveis, houve mexidas na estrutura de comando — e, com elas, vieram também críticas, sobretudo a quem apontavam falta de experiência ou de qualificações para os lugares mais relevantes ou amizades partidárias a influenciarem certas escolhas. Meses depois, em setembro, novas mexidas no comando com o próprio comandante da Proteção Civil, Rui Esteves, a sair — pressionado pela controvérsia à volta das decisões que tomou sobre o incêndio de Pedrógão Grande, a licenciatura que tirou a troco de equivalências e os cargos públicos que acumulava. A “grande rotatividade” nos cargos de chefia de que fala a auditoria também passou por estes casos.

Agora que se voltam a identificar os problemas, que se sabe o que está a falhar e o que é preciso mudar na Proteção Civil, o que vai acontecer? Quanto tempo é preciso esperar para que algo mude? Não quero acreditar que, sobretudo depois do último ano, e de termos aprendido da pior forma o custo de tantas ineficiências, seja preciso esperar mais dois ou cinco ou dez anos para que a Administração Interna e as entidades que tutela cumpram com o que lhes é pedido — e necessário. Não quero pensar que o trabalho do Tribunal de Contas se arrisque, de novo, a cair em saco roto. Também não imagino que seja preciso esperar por outra auditoria para perceber que tudo está na mesma, mesmo estando mal. Não posso acreditar que o país continue a ser tão inconsequente com isto, como tem sido em tantas outras situações. Não pode haver verdade sem consequência e ela, neste caso, está bem à vista.