No congresso do seu partido, António Costa explicou uma coisa: não quer a “ruptura com a Europa”; mas propõe “tensão com a Europa”. Creio que já todos percebemos: a “Europa” ocupou o lugar do “capital especulativo” que foi a única razão de ser de todas as dificuldades do país nos últimos tempos da monarquia de José Sócrates, em 2010-2011.

Lembram-se? O país estava óptimo, poderia estar ainda melhor, não fossem os “mercados” e as “agências de rating” pretenderem acabar com o Euro, para restaurar já não sei que império outrora americano. Sócrates era assim, ingrato. Porque, de facto, de que vivera e abusara ele durante anos, senão do chamado “capital especulativo”, com que aumentara brutalmente a dívida (de 67,4% para 111,4% do PIB, entre 2005 e 2011)? O “capital especulativo” foi a mão que alimentou o socratismo, mas que este não hesitou em morder.

Como agora o costismo com a Europa. O que tornou possíveis as reversões e as reposições que são a paixão e o orgulho da actual maioria? A política do BCE (em cima do sucesso do ajustamento e da notação caridosa da DBRS). Sem o BCE, Portugal não teria as taxas de juro que tem. Sem o BCE, Costa não estaria a reverter e a repor. Mais: com que dinheiro conta agora Costa para estimular a economia? O dos fundos estruturais do Portugal 2020. Esta é o grande logro político deste governo: protesta contra as “actuais políticas europeias”, quando precisamente vive das actuais políticas europeias. É por isso que não se atreve à “ruptura”. Mas é também por isso que pensa que pode permitir-se “tensão”, isto é, guerrilha e demagogia.

Mas não é verdade que o Tratado Orçamental impede “políticas keynesianas”? Não, não é verdade. O Tratado Orçamental não impede políticas keynesianas. O Tratado Orçamental só define limites para os défices públicos. Se o défice não ultrapassar esses limites, os Estados podem ter todas as políticas keynesianas que desejarem. O problema do que alguns chamam “social democracia” em Portugal é que teria de ser financiada com o dinheiro dos outros. O equilíbrio orçamental não é simplesmente exigido pela UE – é imposto pela nossa situação de país que, devido à baixa poupança interna, tem de financiar o défice e a dívida nos mercados internacionais.

E não, não estou a dizer que a nossa dependência nos tira o direito de criticar as políticas da UE. Não estou a falar das críticas. Estou a falar de outra coisa: do cinismo daqueles que acreditam que se pode governar um país só para benefício de algumas classes ligadas ao Estado, e que agora pretendem disfarçar as dificuldades por meio de uma guerra imaginária com a Europa. Mais uma vez: não estou a referir-me à discussão das políticas europeias, mas a essa velha trapaça que é a exportação de responsabilidades.

Esta guerra europeia distrai-nos de coisas importantes: por exemplo, porque é que Portugal, neste trimestre, voltou a não conseguir crescer ao ritmo da zona Euro, como já não conseguiu nos anos anteriores à crise de 2008, ao contrário da Grécia? Esta guerra europeia é também perigosa. António Costa e os seus parceiros parecem viver ainda na Europa de há vinte anos, na Europa irreversível, em que tudo era sacrificado a um pouco mais de integração, e a integração tinha de compreender todos. Hoje, a Europa, tal como os EUA, está a ser subvertida por nacionalismos proteccionistas, em campanha contra organizações e tratados internacionais. Um dos temas do Brexit é, depois da imigração, o repúdio da participação em resgates financeiros. Em Portugal, é a maioria governamental que fomenta o nacionalismo revanchista. Ateia o fogo que a há-de consumir.

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