Ao fim de 40 anos, Estela de Carlotto, presidente das Avós da Praça de Maio (Abuelas de la Plaza de Mayo), encontrou o neto, raptado durante a ditadura militar argentina (1976-1983), que ficou conhecida por “Processo de Reorganização Nacional”.
Esta é, sem dúvida, uma das histórias mais felizes na Argentina, este ano. Cristina Fernández, presidente do país, ligou a Estela mal soube da notícia. Perguntou se era verdade e ela disse que sim. “Chorámos juntas, não sabíamos que dizer… Não há como, por mais que assim o queiram, negar que isto é um triunfo para os argentinos”, contou a presidente das Avós da Praça de Maio, numa conferência de imprensa, na terça-feira. Estela de Carlotto tem 83 anos e o neto Guido, 36 anos. Laura, filha de Estela e mãe de Guido, nome do neto, teria hoje 60 anos se não tivesse sido assassinada aos 24 anos, durante o período da ditadura militar no país.
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— Vicky Baker (@vickybaker) August 6, 2014
Laura e Oscar Montoya, o seu companheiro, pertenciam à organização guerrilheira os “Montoneros”. Quando foi presa, Estela sabia que a filha estava grávida de dois meses e meio. Muitas testemunhas garantiram-lhe que a filha havia dado à luz um rapaz e que se chamava Guido, o nome do avô. Desde esse dia, Estela de Carlotto começou a procurar o neto por toda a parte, sem nunca ter pronunciado uma palavra de ódio ou vingança, escreve o El País. Só pedia justiça. Converteu-se numa referência mundial da defesa dos direitos humanos. Com os anos a passar, foi perdendo muitas das companheiras de luta. Mas ela continuou a procurar.
O número mágico 114
A associação a que Estela preside encontrou ao longo dos anos 113 netos desaparecidos durante a ditadura. O 114º foi o seu. Guido é um músico e vive na localidade de Olavarría. De acordo com os testes, existe uma probabilidade de 99% ser o neto de Estela de Carlotto. Nenhuma das outras 114 histórias foi fácil, mas a descoberta do neto da presidente das Avós de Maio é algo especialmente simbólico.
Na terça-feira, Estela lembrou que os netos que procuram a associação também têm enormes dúvidas. “As famílias que os criaram podem dizer-lhes: ‘não me vais denunciar agora, quando eu te criei’. E muitas vezes eles esperam que essas famílias morram. O problema é que às vezes é tarde demais, porque os avós também já morreram”, explicou Estela.
A ditadura argentina tinha dois anos de existência quando, a 26 de Junho de 1978, nasceu Guido de Carlotto no Hospital Militar de Buenos Aires. Pelo que se sabe, Laura, a mãe, só teve autorização de estar cinco horas com ele. Laura estava detida no centro clandestino La Cacha, na localidade de La Plata. A mãe de Guido, um dos quatro filhos de Estela de Carlotto, foi raptada aos 23 anos, juntamente com o seu companheiro, em novembro de 1977, quando estava grávida de dois meses e meio. Meses depois do nascimento de Guido, Laura foi assassinada – o corpo foi entregue à mãe. Mas nunca se soube nada de Guido, até à passada terça-feira.
A Juíza Maria Servino de Cubría, encarregada de investigar a causa de vários desaparecimentos durante a ditadura militar, foi quem contou a Estela que tinham encontrado o seu neto. “Foi muito emocionante”, afirmou Servino de Cúbria, ao canal CN23. “Esta história não me deixou só emocionada a mim, mas toda gente que trabalha comigo. A Estela reagiu chorando, tremendo, emocionada. Não estava à espera desta notícia”, disse a juíza. Até terça-feira, Guido de Carlotto chamava-se Ignacio Hurban, nome atribuído pelos pais adotivos. Na linguagem das Avós de Maio este tipo de pais são conhecidos como os “apropriadores” – famílias que eram apoiantes da ditadura.
www.ignaciohurban.com
Hurban cresceu em Olavarría, um município a 308 quilómetros de Buenos Aires. Em adolescente, mudou-se para a capital para estudar música, mas mais tarde regressou à sua cidade, local onde dirige uma escola de música. Esta informação está disponível na página www.ignaciohurban.com. Gosta de jazz e tango, e chegou a participar num ciclo de música organizado pelas Avós de Maio. Agora, talvez, tenha de mudar o nome da sua página.
“Eu não procuro mais do que a justiça, a verdade”, disse Estela, numa conferência de imprensa na terça-feira, quando ainda só tinha visto o neto por fotografias. “Tenho mais 14 netos comigo. O lugar dele estava vazio, à espera. O espaço nos retratos estava vazio, à espera. Já o vi nas fotos, é bonito. É um artista, é um bom rapaz. E procurou-nos. Veio até às Avós [de Maio] em julho, foi recebido e escutado”, explicou.
E acrescentou: “Quando o vir, acho que não vou dizer-lhe nada. Vou dar-lhe um abraço. Quero tocá-lo, quero ver se é como o sonhei. Eu vi-o em fotografias e parece-se connosco.” Até agora, Guido só manteve contacto com Claudia, uma das filhas de Estela. “Eu ainda não falei com ele. Ele disse [à filha Claudia] que estava muito feliz e pronto para nos ver. Ele sabe que toda a família está à espera dele”, disse Estela.
Ao longo dos anos, sempre que foi questionada se ia morrer sem conhecer o neto, Estela afirmava que essa ‘cruz’ era compensada por ter 14 netos. Nesta terça-feira, Kibo Carlotto, o filho mais novo de Estela, e irmão de Laura, confirmou à televisão argentina: “Passados 36 anos, encontramos o meu sobrinho. Ele apresentou-se voluntariamente para fazer um teste de ADN.”
A Associação das Avós da Praça de Maio tem 85 sedes na Argentina e 150 empregados. Até hoje, continua à procura dos netos desaparecidos. Ainda existem 400 denúncias por resolver.