Extraterrestres. São monstros, raros, criaturas sem igual. O nome resume-o: não pertencem a este planeta, onde o homem aprendeu a equilibrar-se sobre dois pés enquanto entretinha uma bola redonda. Eles, os anormais, seja onde tenha sido, nasceram com um dom — o da amizade com a bola. Uns seduzem-na com fintas, outros com corridas desenfreadas. Há quem prefira amansá-la nos livres, com ela parada. E depois há os carteiros. Os que a mandam ir para a baliza e poucas vezes a veem fugir do endereço. Do golo. Ronaldo e Messi são assim. Duas centrais de correios.

E logo umas que, desde 2009, colidem duas vezes por ano. Pelo menos. Cristiano anda por Madrid, Lionel nunca saiu de Barcelona. Por lá, nas cinco épocas anteriores e mais uns quantos jogos da atual temporada, o português vai com 268 golos em 255 partidas. O argentino leva 273 em 266 encontros. Quando se armam em central dos correios, o baixote de 27 anos é mais generoso: já fez 99 passes que deram um golo a alguém, enquanto o musculado de 29 anos conta 69 assistências. Juntos roubaram as últimas seis Bolas de Ouro (desde 2008). São monstros, ponto final. Há um melhor que outro? Certo é que, os dois, são melhores que todos os outros.

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Os terráqueos. Como Tiago Gomes, o infeliz lateral esquerdo, que esperou até aos 28 anos para se estrear pela seleção nacional e bem apanhou o cabelo, com um nó, à cabeça, para não perder de vista Messi. Foi quase sempre por ali, junto ao canhoto, que Messi andou durante a primeira parte, a infernizar-lhe a vida. Aos 5’, após André Gomes perder uma bola à entrada da área, só precisou de dois toques para deixar Di María com a bola e espaço para rematar. Foi o que fez, e a bola passou bem perto do poste direito da baliza portuguesa.

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Depois, com 11 minutos, Messi só precisou de uma tabela com Biglia e um arranque para deixar Tiago Gomes a cambalear, atrás de si e, com o pé direito, disparar um remate mascarada de cruzamento, que voltou levar a bola a passear perto do poste. Aos 13’, desta vez parado, pôs o pé ao jeito de uma trivela, largou uma carta e, na área, Pastore só não a transformou em golo porque Pepe, o terrestre português que ia cortando tudo, lhe roubou a bola.

E Ronaldo, o Cristiano? Essa, o outro extraplanetário, apareceu aos 16’, quando recuou, aguentou os empurrões de um defesa e, com um toque artístico, criou uma via verde para Bosingwa terminar com um torto cruzamento uma rara saída para o ataque que Portugal conseguiu colar. Outra, aos 29’, deixou o capitão da seleção brilhar: Roncaglia não cortou um cruzamento da direita, a bola foi parar a Ronaldo que, com três fintas, foi simulando um remate e pregando dois defesas à relva, antes de um remate de pé esquerdo disparar a bola perto, mas por cima da baliza.

Pouco antes, aos 27’, Lionel aproveitou-se do ponto fraco do adversário extraterrestre — o facto de Ronaldo não recuar e ajudar o lateral –, para, com a bola, desafiar Tiago Gomes, fixá-lo, e libertar Roncaglia na direita, que cruzou para Pastore, na área, cabecear a bola com perigo. De resto, a bola ficou amiga da Argentina. Até ao intervalo, a seleção nacional poucas vezes passou dos 30% de posse de bola e falhava sete em cada dez passes que tentava. Os albicelestes não. Afinal, se cada equipa tinha um extraterrestre, a diferença teria que estar nos dez terráqueos que os acompanhavam no relvado. E aí, os sul-americanos reinavam.

E nisto, nas trocas de passe, no tempo passado com a bola, na pressão que ligavam assim que o adversário lhes roubasse o bem mais precioso, continuaram a ser melhores na segunda parte. Com uma diferença — a intensidade abrandou, muito. Passou, aliás, a ser apenas terrestre, já que Ronaldo e Messi ficaram no balneário para assistirem ao resto da 27.ª partida em que coincidiram em campo.

O jogo passou a ter Ricardo Quaresma, o homem feito amuleto da sorte de Fernando Santos (um golos e duas assistências, em três jogos). Mas, do outro lado, também apareceriam Erik Lamela, Carlos Tévez e Nico Gaitán. Outro pequenote, este do Benfica, que aos 64’ até conseguiu, de cabeça, rematar a bola enviada de longe por Javier Mascherano, o então capitão argentino. A pouco e pouco, minuto a minuto, o jogo ia-se aborrecendo. Os argentinos continuaram a ter muita bola, os suplentes ia entrando com genica, mas erravam mais e tentavam mais vezes fazer as coisas sozinhos. Do lado português, perigo era coisa inexistente. Erravam-se muitos passes e a equipa encolhia-se ao ponto de ter todos os 11 jogadores atrás da linha da bola, a defender.

As bancadas de Old Trafford já não reagiam à presença dos monstros. Não se ouviam mais os aplausos a Ronaldo, pelo passado ligado a Manchester (passou seis épocas no United), nem os búúús e assobios dedicados a Messi (pelos golos que, ao longo dos anos, foi marcando à equipa inglesa). Passou a ser um encontro de passes, de posse de bola, quase a ver qual a equipa que mais tempo aguentava com ela nos pés. Um jogo que os argentinos insistiam em ganhar. Só aos 88′ é que uma das aventuras de Quaresma, pela direita, a levar a bola até conseguir espreitar por um espaço, terminou num cruzamento que, perto do primeiro poste, Éder não conseguiu desviar para a baliza. Pelo meio, Adrien Silva e José Fonte, com 25 e 30 anos, também se estrearam pela seleção.

E também houve tempo, e azar, para um emigrante continuar o estágio com o português, a língua dos pais. Os que Raphäel Guerreiro tem em França, onde nasceu, cresceu, se fez jogador e lateral esquerdo que, aos 50′, teve de entrar para substituir um lesionado Tiago Gomes. Era o segundo jogo do novato pela seleção, do miúdo de 20 anos que entende, mas não fala, português. Esteve certinho a defender e ousada a atacar, não largando Nani quando o extremo, pelo seu lado, tinha a bola e era altura de atacar.

Como o foi aos 91′. O relógio já era generoso e compensava o tempo perdido quando Adrien, à entrada da área, rematou e viu Éder, no sítio errado, mas à hora certa, barrar o caminho da bola e desviá-la para a direita. Para Quaresma. Lá está, em boa hora, pois o extremo cruzou de primeira e, na área, estava Raphäel sozinho. Ali, onde até nem devia por ser lateral esquerdo. Foi remédio santo: o defesa saltou, cabeceou a bola e marcou. O 1-0 chegava com uma carta entregue à última hora. Desta vez, pela cabeça de um dos mais humanos entre os terráqueos, que se intrometeu num duelo de extraterrestres ao qual insistiram em reduzir este jogo.

Um que acabaria em vitória, mesmo que Fernando Santos não tenha gostado: “Não pressionámos. Chegámos sempre atrasados à bola e deixámos a Argentina jogar.” Salvou-se isso, a história, a façanha de, 42 anos depois, Portugal vencer um jogo de futebol contra a seleção argentina, a hoje vice-campeã do Mundo que, em setembro, se vingara do Mundial e fora à Alemanha vencer (4-2) os germânicos. Agora ganhou Portugal, sem que um dos monstros, Ronaldo ou Messi, fizessem o que mais sabem fazer: marcar um golo.

São os melhores, sim, nada belisca isso. Mas os cerca de 675 mil artigos que, em 2014, já se escreveram sobre Lionel, ou os quase 860 mil que foram publicados sobre Ronaldo (diz a Cision) terão de ficar quietos. Desta vez, foi o mais humano de todos, o miúdo que se quer dar a conhecer, a reclamar o golo que os extraterrestres não costumam largar.