Um plano a 25 anos, “políticos com coragem” e uma abordagem de controlo de danos são os ingredientes da receita do relator especial das Nações Unidas François Crépeau para enfrentar o desafio dos fluxos migratórios. Palavras da ONU num ano em que foi dos mais preocupantes de sempre. De acordo com os dados do ano passado da Organização Internacional para as Migrações, morreram quase cinco mil pessoas à procura de uma vida melhor.

“Não podemos esperar que os três milhões de pessoas à espera nas nossas fronteiras não tentem atravessá-las”, disse à Lusa o relator especial das Nações Unidas para os Direitos Humanos dos Migrantes, François Crépeau.

A reação do responsável pela área nas Nações Unidas fala à agência portuguesa na sequência de mais um novo caso, desta vez em Itália, onde um navio cargueiro foi abandonado à deriva com 450 pessoas a bordo. A nova técnica das máfias de imigrantes que estão a deixar as autoridades alerta.

Em entrevista telefónica à Lusa, François Crépeau diz que a resolução do problema exige “ideias criativas” e “não vai acontecer de um momento para o outro”. Mas arrisca uma receita. Primeiro, um plano a longo prazo, para os próximos 25 anos, assente numa maior mobilidade.

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“É extremamente paradoxal que, hoje, em nome de medidas para controlo de fronteiras, os Estados tenham perdido o controlo dessas mesmas fronteiras, agora controladas por traficantes”, critica, considerando que a política de tolerância zero demonstrou ser “a abordagem errada”.

Daí que o segundo ingrediente passe por políticas de “redução de danos”, retirando poder às redes de traficantes. “Proibir as pessoas de entrarem apenas cria um mercado para as máfias que prometem ultrapassar a proibição. Se queremos controlar o fluxo de pessoas, temos de autorizar a passagem para a maioria delas”, contrapõe o professor canadiano, considerando que é aqui que a União Europeia pode “demonstrar liderança”, como já o fez com os acordos de Schengen, por exemplo.

Lutar contra a exploração laboral dos imigrantes passa por reconhecer que eles são necessários e por lhes dar poder para denunciarem os abusos e reivindicarem os seus direitos. O que leva ao terceiro ingrediente: “Políticos com coragem”.

Três anos após o início do conflito na Síria, “a Europa nada fez para acolher” os três milhões de refugiados sírios. “Liderança” – diz François Crépeau – seria um programa conjunto dos países desenvolvidos para os acolher, ao longo dos próximos três anos. “O que podemos esperar de pessoas normais, que esperam e desesperam, sem qualquer solução à vista? Se eu e você estivéssemos nesses campos, o que faríamos?”, questiona, avançando a sua resposta: “Eu iria com os traficantes. E a maioria desses ministros que nada querem fazer fariam o mesmo, pelas suas famílias.”

Por esta e por outras, François Crépeau não esconde a irritação face à posição assumida pelo Reino Unido de deixar de financiar as operações de busca e salvamento de imigrantes no mar, com o argumento de que incentivam outros a tentarem chegar à Europa.

“As operações de busca e salvamento têm a ver com salvar vidas”, resume. Portanto, o que Londres está a dizer é que “devemos deixá-los morrer, porque isso será uma lição a todos os candidatos à imigração irregular”, interpreta, qualificando a posição de “profundamente cínica”.

Porém, “as operações de busca e salvamento são o curativo de uma ferida maior”, reconhece. “A verdadeira questão é saber por que é tantas pessoas arriscam a vida e a segurança às mãos de traficantes”, realça, dando a resposta: “Não há outra hipótese de chegarem à Europa.”

E quem chega sabe que “há trabalho” para si na Europa. “Porque permitimos, nos nossos países, que muitos setores da economia funcionassem na base de um mercado laboral clandestino”, muito dependente da “exploração de imigrantes irregulares”, assinala.

“Precisamos desses imigrantes, mas o problema é que precisamos deles a dois euros à hora e a única razão por que eles aceitam esses dois euros à hora é porque não têm outra opção”, recorda. “Não podemos ficar indignados por chegarem de forma irregular se não lhes oferecemos hipóteses de chegarem de forma regular”, sublinha.

“Os fundamentos da democracia não estão a ser aplicados aos imigrantes. A democracia deve ser o governo do povo, pelo povo e para o povo, mas uma grande parte das pessoas não está incluída no ‘povo’”, destaca. “Uma piada sexista, hoje, pode arruinar a carreira de um político, mas dizer coisas absolutamente ridículas sobre imigrantes ainda é aceitável”, compara.