1. A hepatite C é “silenciosa”, “só num estado muito avançado é que dá sinais”. O vírus pode andar até 10 anos no organismo sem manifestar sintomas. Por isso, é normal que Luís Filipe Dinis, 55 anos, não saiba precisar, ao certo, quando e como foi infetado.

Ainda assim, aponta para quando tinha 20 anos. “Fui operado. Ou, eventualmente, foi na tropa. Naquela época, era uma agulha para todos quando éramos vacinados”, diz, em conversa com o Observador. Em 2001, quando um médico que tinha operado a mãe lhe recomendou fazer umas análises, descobriu que tinha o vírus. Foi encaminhado para o departamento de hepatologia do hospital de Santa Maria, em Lisboa. Hoje, é seguido no hospital de Santa Cruz, em Carnaxide.

Fala com os braços cruzados, atrás do balcão da exígua ourivesaria que gere em Algés. Veste um casaco de lã e por baixo tem uma camisa polar apertada até ao pescoço. Os doentes com hepatite C fazem parte de vários grupos de risco – e a gripe “anda aí”.

2. “Há quem compare o tratamento para a hepatite C à quimioterapia.” O cabelo cai, o cansaço é permanente, abrem-se feridas no corpo. “Algumas pessoas passam quase um ano seguido com 40 graus de febre, enquanto fazem o tratamento, devido aos efeitos secundários.” Luís mostra as cicatrizes e manchas negras que ficaram nas pernas. Desde que foi diagnosticado, já fez três tratamentos. Todos sem sucesso.

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O primeiro foi com interferão-ribavirina. Resultado: nenhum. A carga viral manteve-se no mesmo nível.

O segundo foi com interferão-peguilato. Resultado: ficou com anemia, teve de desistir do tratamento.

O último foi em 2013, com boceprevir, medicamento com uma taxa de cura de 50%. Resultado: “Tive a porta da loja fechada durante quase doze semanas.”

Vai buscar uns papéis onde tem descrito todos os tratamentos porque já passou. Em agosto de 2014, o médico recomendou-o para ser um dos primeiros a tomar o Sofosbuvir, medicamento da empresa farmacêutica Gilead que tem uma taxa de cura de 90%. Luís está em lista de espera.

3. “Muitas pessoas não dão a cara [e assumem que têm hepatite C] por terem vergonha. Por causa da ligação da doença à droga.” Tal como no VIH, o vírus da hepatite C pode ser passado através da troca de seringas. Este é um dos estigmas que existem em volta da doença, explica Luís. A hepatite C é identidade. “Não tenho de ter vergonha, ela é minha, ela está cá dentro.” A doença. Luís já perdeu “uma mão cheia” de amigos para a doença.

Foi criado um portal informático para os doentes em lista de espera para terem acesso ao novo tratamento para a hepatite C, mas só os médicos é que têm acesso. Luís está em fila de espera. Mas não espera sentado.

“Vou mandar uma carta registada para o hospital para pedir o meu registo clínico e a confirmação que o meu nome está nesse portal”, afirma. Neste momento, não sabe quanto tempo de vida tem, mas a solução não passa por ficar parado. A revolta de Luís não é singular. Lembra-se de uma coisa que o médico lhe disse numa das últimas consultas: “Luís Filipe, qualquer dia demito-me [do hospital]. Não entendo esta forma de tratar doentes.”

4. “A gente sente-se impotente perante a prepotência destes políticos.” Ontem, Luís também estava na Assembleia da República quando José Carlos Saldanha interrompeu a comissão parlamentar de Saúde, onde estava Paulo Macedo. “A mãe do David morreu, não me deixe morrer”, disse José Carlos Saldanha ao ministro da Saúde.

Hoje, José “está de rastos, nem consegue falar”, devido à doença, conta Luís. Os dois falaram ao telefone, de manhã. Nos últimos tempos, Luís tem-se aproximado de grupos de apoio à sua doença e foi aí que conheceu José. Estar em grupo é uma forma de encontrar amparo e soluções.

Olha para o computador e vê uma notícia onde aparece uma fotografia de Pedro Passos Coelho. Imediatamente, lembra-se das declarações que o primeiro-ministro fez na quarta-feira à noite sobre o preço dos medicamentos para a hepatite C. Passos Coelho garantiu que os Estados devem “fazer tudo o que está ao seu alcance para salvar vidas humanas”, mas não a “qualquer preço”.

“Como é que um homem destes tem coragem de dizer tal coisa quanto tem a mulher com cancro?”, questiona Luís.

O telemóvel toca e Luís atende. No meio da conversa diz: “Não quero ir para ao pé do Eusébio e da Amália.”

5. A cura custa dinheiro, muito dinheiro. “O Sofosbuvir não tem efeitos secundários”, diz Luís, como quem fala da descoberta da pedra filosofal. E tem uma taxa de cura de 90% dos casos, acrescenta. Mas custa 42 mil euros… Mas está a custar ao Estado chegar a acordo com a farmacêutica Gilead… Mas custa “a entender esta situação”. Uma mulher de 51 anos morreu, no meio desta espera.

A morte está em todo lado e pode acontecer a qualquer momento, admite Luís. “No atravessar de uma rua.” Mas o caminho que Luís percorre é ainda mais perigoso: é a morte que está a vir ter com ele, enquanto não fizer o tratamento. “Ando a caminhar em cima do fio de uma navalha e posso cortar-me a qualquer momento.”