É lendária, e objecto de histórias e anedotas, a paciência de chinês. Mas e a paciência de japonês? Isao Takahata, uma das glórias do cinema de animação nipónico, e co-fundador, como Hayao Miyazaki e Suzuki Toshio, dos Estúdios Ghibli, demorou oito anos a rodar “O Conto da Princesa Kaguya”, a sua nova maravilha em animação tradicional (estreia-se hoje).

Cinco anos de trabalho volvidos, o filme apresentava apenas meia hora de “storyboard” concluída. Miyazaki queria que o seu filme de despedida, “As Asas do Vento”, tivesse estreia simultânea no Japão com “O Conto da Princesa Kaguya” (que deverá também ser a última realização de Takahata), porque as fitas de ambos, que tinham lançado o Estúdio Ghibli em 1988, respectivamente “O Meu Vizinho Totoro” e “O Túmulo dos Pirilampos”, haviam também estreado ao mesmo tempo.

Mas desistiu da ideia, porque Takahata estava com a produção atrasadíssima. Os dois filmes seriam, no entanto, nomeados para o Óscar de Melhor Longa-Metragem de Animação. Que deveriam ter partilhado, se houvesse justiça plena nos prémios de Hollywood.

Mas oh, se vale a pena ter tido tanta paciência para esperar por “O Conto da Princesa Kaguya”. A lentidão, meticulosa até à exasperação, de Isao Takahata, que faz 80 anos em Outubro, redunda num espectáculo de uma raríssima beleza, sensibilidade e sofisticação. Além de confirmar a excelência da animação feita no Estúdio Ghibli, o filme desdiz aqueles para os quais o futuro do género (ou, pelo menos, das longas-metragens de estúdio) está nos computadores e no digital. Nada mais errado, como se pode constatar nesta nova maravilha do realizador que, na televisão dos anos 70, foi responsável por duas séries animadas que marcaram a história do meio nessa altura, também vistas em Portugal: “Heidi” e “Conan, o Rapaz do Futuro”.

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“Trailer” oficial de “O Conto da Princesa Kaguya”

https://youtu.be/K3T9lR5ntKg

“Trailer” mais longo do filme

Coordenando uma equipa de artistas desenhadores, animadores e coloristas, Takahata recorreu ao desenho a carvão, à aguarela e ao pastel para fazer “O Conto da Princesa Kaguya”, dando-lhe uma identidade visual de uma imensa delicadeza, subtileza e precisão na representação dos cenários, das atmosferas e das personagens, que remete directamente para a arte tradicional japonesa, em especial para a gravura e para os desenhos e pinturas em rolos de papel.

E mesmo os momentos fantásticos do filme, como a chegada da embaixada da Lua, no final, uma sequência de antologia, partilham dessa relação com a mais ancestral tradição artística nipónica. Computadores, para que vos quero, quando há mãos humanas capazes de criar maravilhas destas! (E não esquecer a banda sonora de Joe Hisahishi, o habitual compositor dos filmes de Miyazaki).

Entrevista com Isaho Takahata

https://youtu.be/aFgah9Kb4mo

Uma cena de “O Conto da Princesa Kaguya”

A história do filme é, ela também, baseada num velho conto tradicional do Japão, datado do século X, que já antes foi levado ao cinema, mas em imagem real, em fitas “Princess of the Moon”, de Kon Ichikawa (1987). Tem como heroína uma menina enviada pelos deuses para a Terra, e que é descoberta, muito pequenina, dentro de um bambu, por um humilde e bondoso cortador de bambus, e criada por este e pela sua mulher, com a ajuda do ouro vindo dos céus, para ser uma princesa bela e prendada – a “Princesa Kaguya” do título (Kaguya significa “luz resplandecente” em japonês). Só que a jovem Kaguya é tão distinta, bonita e prendada como traquinas e senhora do seu nariz. Faz a vida negra ao seu esforçado pai adoptivo, que quer casá-la o melhor possível, leva ao desespero a nobre dama da corte contratada para a educar e ensinar etiqueta, e tem saudades da vida despreocupada que tinha no campo, do grupo de crianças amigas da aldeia e do rapaz que desde pequena lhe arrebatou o coração.

Um dos temas musicais do filme

Há na personagem de Kaguya algo da irrequietude alegre da Ponyo do filme de Hayao Miyazaki “Ponyo à Beira-Mar”, combinada com a sede de independência das heroínas de algumas animações da Walt Disney, e “O Conto da Princesa Kaguya” abarca temas intemporais como a felicidade intensa mas finita da juventude, a ilusão das posses materiais, a capacidade transfiguradora do amor, a inelutabilidade do destino e o confronto entre um mundo fantástico onde há paz, perfeição e harmonia, mas também um eterno esquecimento, e o nosso mundo imperfeito e brutal, mas também cheio de coisas e pessoas maravilhosas.

Isaho Takahata junta tudo isto e filma com um amor à beleza, um apuro estético, um esplendor cinematográfico, um permanente sentido do encantamento, uma tal poesia visual, narrativa e dos sentimentos e uma tão lancinante tristeza (“O Conto da Princesa Kaguya” é um daqueles filmes em que ansiamos por um final feliz convencional, de última hora, “à la Disney”, mas os contos tradicionais, sejam de onde forem, não gostam muito disso), que esta jóia animada merece inteiramente que lhe chamemos obra-prima. Abençoada paciência de japonês.