Quando uma pessoa se conhece bem, tão bem, a ela própria, não confia no “prrriiimm” irritante do despertador. Por isso há que fazê-lo insistir, torná-lo ainda mais irritável e mandá-lo repetir o toque uma e outra vez, até o sono já não ser imune a irritações. Mas há uns que são. Porque há sonhos dos bons, dos tão bons, que mais vale confiar no que dizem — que um sonho é coisa que não repete — e tentar forçar o sono para que este volte a adormecer. E o FC Porto queria agarrar-se a ele à força, ao mesmo que lhe dizia, desde a primeira mão, que próxima estava a passagem à meia-final da Liga dos Campeões. O problema é que há despertadores que são feitos para serem teimosos ao ponto de serem eles próprios a ditarem quando o sonho tem de acabar.

E quando o tique-taque não falha, Pep Guardiola é o obreiro de um deles.

19h45. A bola começa a rolar e o despertador está tão quieto quanto o sonho dos dragões está vivo. É eles que lhes diz que a noite é para cautelas e os 11 portistas obedecem-lhe. Partem do princípio que a bola é de quem mora em Munique e que a prioridade é impedir que os jogadores do Bayern não façam o que bem lhes apetece com ela. Por isso Quaresma e Brahimi, tal e qual a primeira mão, chateiam os laterais alemães, Jackson Martínez é uma sombra de Xabi Alonso enquanto Herrera e Óliver, certinhos, intrometem-se nos espaços onde poderiam entrar passes para Thiago Alcântara e Philip Lahm. A organização resulta e, durante uns 10 minutos, a bola rola e rola nos pés do Bayern, mas perigo é coisa que não se vê em lado nenhum.

19h55. Mas algo estranho, desconfortável até, leva o corpo do FC Porto a estremecer, a dar um safanão na cama que lhe guardava o sonho — porque Lahm, o pequenote capitão dos bávaros, começa a encostar-se à direita, à linha, e Müller a colar-se ao grandalhão Lewandoski. Xabi Alonso vai encostando-se à frente, a levar Jackson a reboque, e os dragões ficam sem o colombiano à frente, para receber as bolas que conseguissem recuperar. No meio o Bayern não joga muito. Porque os dragões não o deixam e, também, porque parece não querer: a prioridade é chatear Bruno Martins Indi e Diego Reyes (sobretudo este, o mexicano que se estreava na Champions), pois ambos são laterais improvisados. Depois é pressionar e seguir a regra de Guardiola: perdendo a bola, a equipa tem quatro segundos para pressionar ao máximo para a recuperar.

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É o que consegue aos 10’, quando Lewandoski a rouba e a lança para se encontrar com um sprint de Thomas Müller, que já na área a remata para Fabiano defender para a frente. O avançado polaco, que embalou para perseguir a jogada, chegou primeiro ao ressalto e rematou-a, depois, ao poste esquerdo da baliza. Susto.

19h59. Está na hora de acordar, diz o despertador, que talvez já reparara que os dragões, preocupados em fechar a baliza, encolhiam-se demasiado para o meio do relvado e, nas vezes em que recuperavam bolas, insistiam em confiar só em Brahimi para, com elas, tentar fazer alguma coisa. Os laterais, a pensarem como centrais, lá se iam juntando aos centrais de verdade e deixavam as faixas desguarnecidas. Por isso aos 14’ houve tempo na esquerda para Bernat cruzar e para, na área, o pequenote (1,74m) Thiago se antecipar ao grandalhão (1,91m) Maicon para, perto do primeiro poste, usar a cabeça para desviar a bola que deu no 1-0. O despertador tocava pela primeira vez, mas o FC Porto, agarrado ao sonho, não acordou.

20h08. O sono não terminou porque o 3-1 da passada semana chegava para aquele 1-0 não terminar com o sonho de chegar às meias-finais da Liga dos Campeões. Mas o Bayern, aqui, começava a ser muito melhor em tudo: na velocidade que dava aos passes, nos cercos que montava para recuperar rápido as bolas perdidas e nos jogadores que acumulava nos sítios onde queria trocar as marcações aos dragões. Como os dois que juntou aos 23’, num canto à direita que marcou à maneira curta para ali concentrar dois portistas. Dali Xabi Alonso cruzou largo, para a cabeça de Holger Badstuber (substituto do tosco Dante, que tanto ajudara o FC Porto na primeira mão e que Guardiola tanto adora) passar a bola à de Jérôme Boateng, que a cabeceou perto do primeiro poste para o 2-0. O “prrriiimm” repetia-se e o ruído, mesmo sendo o que dava sinal de que a eliminatória já sorria com os golos marcados fora ao Bayern, não acordou ninguém.

20h12. Os dragões corriam mais do que nunca. Jackson mal tocava na bola, Quaresma defendia bem mais do que atacava e os laterais não atinavam com o que se passava. Julen Lopetegui fartava-se de berrar no banco, mas nem assim a equipa mantinha os jogadores juntinhos quando o Bayern, uma e outra vez, ia virando o jogo com a bola pelo ar. Aos 27’ voltaram a fazê-lo, mas o passe tão esticado foi que Philip Lahm, à direita, bateu a bola de primeira, sem a deixar cair, para Müller, que dentro da área fez o mesmo para a mandar para a cabeça de Lewandoski, que imitou ambos para rematar logo para a baliza. E marcar. Era o 3-0 e, até ali, o FC Porto conseguira trocar apenas nove passes na metade do campo do Bayern.

Bayern Munich vs FC Porto

Julen Lopetegui berrou até mais não, mas a equipa, nem assim, despertava

20h21. Nove minutos passam e nada muda. Lopetegui tenta remediar um dos lados e, pelo meio, troca o mexicano Reyes pelo português Ricardo, mas nada melhora. Até é dele o passe que, aos 36’, tenta que a bola chegue, pelo ar, a Jackson, que estava na linha de meio rodeado de adversários. O passe é intercetado e a bola chega a Thomas Müller, que correu uns metros com ela e, a 25 da baliza de Fabiano, decide rematá-la. O pontapé sai rasteiro e, a meio caminho, encontra o corpo encolhido de Bruno Martins Indi, que a desvia dos braços que Fabiano já esticara para a direita da baliza e a atira na direção das pernas com que o brasileiro não lhe conseguiu tocar. O azar, nisto, tocava à campainha e o 4-0 aparecia vindo do pé de quem, antes do jogo, dissera que os bávaros “não podiam ser kamikazes” e que, depois de ele acabar, admitiu que “nunca [imaginara] uma primeira parte assim”.

20h25. Os dragões, nos entretantos, nada conseguiam mudar e, por isso, esta tal primeira parte ainda seria pior para eles. Poucos segundos respiravam com as bolas que recuperavam e os jogadores não avançavam os metros suficientes para montarem uma pressão parecida à que tinham mostrado no Estádio do Dragão. E a agressividade era coisa que morava mais nas pernas bávaras. E nas de Müller, que aos 40’ foi atrás de um ressalto de bola com Casemiro, ficou com ela, lançou-a num passe atrasado para a área, onde Lewandoski a apanhou e rematou, rasteira, para o 5-0. Em 26 minutos os dragões, portanto, tinham sofrido cinco golos. O despertador não se calava e, à beirinha do intervalo, esperava que à quinta fosse de vez. Tanto tinha de ser que foi mesmo e os 15 minutos que o Lopetegui e os dragões tiveram na cama, a acordarem, serviram para pensar no que poderia mudar quando se levantassem.

E foi aí que perceberam que o sonho já acabara e que, nos 45 minutos que restavam, outro jogo havia por jogar.

Julen Lopetegui percebeu isso e arriscou uma maneira de calar, de vez, o despertador. Disse a Quaresma para ficar no banco de suplentes, atirou Rúben Neves para o relvado e mandou Casemiro para o meio de uma defesa a três, ladeado por Maicon e Marcano. As laterais ficavam para Ricardo e Indi e Brahimi juntou-se aos três médios para a bola fazer mais companhia a pés azuis e brancos. As mexidas correram bem, porque os passes começaram a entrar e os segundos contarem-se em que o FC Porto conseguiam rodar a bola de um lado ao outro do campo.

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Os dragões passavam a ter muitos pés para tocar a bola no meio e sempre dois homens colados às linhas para esticarem os alemães, que também já não puxavam tanto da intensidade. A posse de bola foi andando nos 55-45 e só aos 58’, num livre à entrada da área, é que Xabi Alonso deu um remate dos perigosos ao Bayern. O FC Porto ia tentando, as bolas chegavam a Jackson, o colombiano tentava rematar, mas só aos 73’ o conseguiu quando Ricardo se lembrou de ir buscar o mesmo veneno que o Bayern tanto servira aos dragões — o lateral pressionou logo à entrada da área, desarmou um alemão, abriu a bola na direita em Herrera e o mexicano cruzou logo para a cabeça de Jackson marcar.

O 5-1 aparecia e, mesmo com a goleada que tanto fizera tocar o despertador, ao FC Porto, de repente, só faltavam dois golos para seguir para as meias-finais. Mas eles estavam a uma distância maior do que a de rematar duas bolas para o fundo da baliza: a equipa, via-se, estava cansada, nem sempre nos eixos por jogar num 3-5-2 estranho e a deixar muito espaço para o Bayern jogar. Espaço que sempre houvera e que, só aqui, os alemães decidiram explorar a sério. Voltaram a acelerar o ritmo e, mesmo depois de um remate bem perigoso de Jackson, aos 77’, o espanhol Marcano, assustado com a hipótese de acordar a mal com o mesmo despertador que Thiago, lançado para a baliza, ameaçava tocar, derrubou o brasileiro à entrada da área. Falta, segundo amarelo, expulsão e, à segunda, um livre de Xabi Alonso a entrar na baliza.

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Depois de o despertador tocar cinco vezes e de acordar uma equipa do sonho que a encolhera, via-se um 1-1 nos 45 minutos da segunda parte. Mas no final contava um 6-1 por culpa dos demasiados “prrriiimm” que ouvira na primeira parte sem que algo fizesse para os calar. O jogo terminava e estava igualado o pior resultado do clube nas competições europeias (em 1978 também perdeu com o AEK de Atenas, por 6-1, para a Taça das Taças) e mais que confirmada a saída dos dragões da Liga dos Campeões. “Não estivemos bem na primeira parte e o Bayern castigou-nos”, resumiu Lopetegui, triste, no final, reagindo ao 7-4 com empurrava para fora da competição “uma equipa que tinha menos 400 jogos de experiência europeia que o Bayern de Munique”. Foi a primeira, e única, derrota da equipa nesta edição da Liga dos Campeões.

Em 90 minutos em Munique os portistas sofreram mais golos do que nos últimos 16 jogos que fez na liga portuguesa. Haverá mais Champions na próxima época, mas o campeonato volta já no domingo e o FC Porto terá já de acordar para o encontro que o espera na Luz, onde jogará para apagar os três pontos que o separam da liderança do Benfica. O sonho de ser uma das quatro melhores equipas da Europa nasceu no Estádio do Dragão e morreu atropelado em Munique, porque manteve os dragões num sono do qual só acordaram ao quinto toque do despertador. Agora resta acordar para o campeonato.