Oito da manhã. A carcaça que ficou guardada na caixa de pão está dura, seca, “mais para lá do que para cá”. Pode parecer, a priori, um problema insolúvel e desagradável. Porém, depois de ler este texto, vai querer deixar o seu pão exposto às agressões exteriores só para dar largas à imaginação no dia seguinte. Guarde o truque-mor primeiro: sempre que um pão está demasiado duro para cortar — para fazer torradas, por exemplo — molhe-o primeiro. Sem medos. Isso vai amolecê-lo o suficiente para depois ir à torradeira ou ao forno. Com esta lição sabida, siga as receitas que se seguem. E tenha em atenção que, em rigor, o pão tem mais que sete vidas, mas este é o número que mais convinha a este artigo.

1. Faça croutons caseiros

São amigos das saladas, sopas de tomate ou de tardes no sofá a ver filmes. Seja qual for a finalidade, mais vale fazê-los em casa do que deitar fora o pão velho e ainda gastar dinheiro em croutons de supermercado. O processo é bastante simples. Como já foi dito anteriormente, se o pão está demasiado duro, basta salpicá-lo com um pouco de água e colocá-lo no forno alguns minutos. Depois corte-o em cubos e, numa taça, envolva-os bem em azeite (opção saudável) ou manteiga derretida (opção gulosa). O tempero é importante: pode usar apenas sal ou arriscar a acrescentar uns dentes de alho. Além disso, ainda pode animar a receita com pimenta, pimentão doce ou fumado, alecrim, tomilho ou orégãos. O céu é o limite. Depois de bem mexidos, atire-os para a maior forma do forno, espalhe-os pela superfície e deixe-os lá durante 15 minutos, a 200º C. Esteja atento à cor (dourada) e à textura (crocante).

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Esqueça as pipocas. Os croutons são uma boa companhia cinematográfica. (foto: Foodie Baker / Flickr)

2. Não compre mais pão ralado

Quando pensa em pão ralado qual é o prato que se lembra instantaneamente? Panados. Se parar para pensar um pouco sobre o pão ralado, vai ver que este ingrediente tem utilizações infinitas: bacalhau no forno, vieiras gratinadas, mexilhões gratinados, curgetes no forno, tomates recheados, bacalhau com natas, ou este Soufflé de Sapateira, do blogue Minha Marmita. Como fazer, então, pão ralado? Simples. Aqueça fatias de pão duro no forno durante algum tempo a uma temperatura baixa. Depois é momento de triturar. Aqui, pode criar um pão ralado normal, que aguenta num saco ou tupperware por três meses; ou acrescentar os sabores que bem entender. Divida o pão em partes e faça pães ralados diferentes: original, com pecorino, parmigiano ou ervas.

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Sandra Santos, do blogue Minha Marmita, usa pão ralado para forrar a panela do soufflé. (foto: Sandra Santos / Minha Marmita)

3. Faça mil e uma tostas

Como o Observador explicou neste artigo, o pão, na verdade, não se estraga, sofre um processo de alteração química. Isso significa que é possível rejuvenescê-lo. A melhor forma é através de calor. É o contacto com a temperatura ambiente — o frigorífico, por exemplo, é um assassino de pães — que transforma o amido e lhe retira humidade. Tostar o pão ou levá-lo ao forno por uns minutos é a melhor forma de ser um deus da panificação e ressuscitar a sua carcaça. Depois de torrado/tostado, o pão é uma tela na qual pode combinar os melhores ingredientes. Repare só na quantidade de nomes que um pão torrado pode ter: torricado, tosta, tostada, crostini, tiborna, bruschetta ou tartines. Tartine é o que Joana Alves — autora do blogue Le Passe Vite e autora de várias receitas publicadas aqui no Observador — chama a estes pães com figos assados e requeijão.

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Quando a época o permitir, junte os figos às tostas. (foto: Joana Alves / Le Passe Vite)

4. Aprenda a fazer rabanadas como a sua avó

“Doze fatias de pão de cacete de véspera com cerca de 1,5 cm de espessura.” É assim que o ingrediente basilar das rabanadas está descrito na receita do blogue Flagrante Delícia, onde Leonor de Sousa Bastos já atiçava papilas gustativas muito antes da blogosfera disparar. É senso comum que uma boa rabanada tem de ser feita com pão seco. Se pensar, por exemplo, no homólogo francês das rabanadas, as french toast, ou na língua de Napoleão, pain perdu, o termo “perdu” já indica que o pão a ser utilizado é um exemplar “perdido”, “passado”, “desperdiçado”. No fundo, seja à francesa, seja à portuguesa, esta receita foi criada precisamente para aproveitar um pão de véspera. O princípio é o mesmo: mergulhar o pão em leite, passar por ovo e fritar até dourar. Apesar de em terras lusas as rabanadas serem sinónimo de Natal, tente largar os preconceitos. Adapte a receita a um pequeno-almoço para evitar desperdícios ou faça um brilharete no próximo brunch de domingo. Se preferir a versão afrancesada, experimente esta, do i am food blog, vencedor do melhor blogue do ano e melhor blogue de culinária da Saveur, em 2014.

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Do lado esquerdo, as rabanadas de Leonor de Sousa Bastos (foto: Miguel Coelho / Flagrante Delícia). Do lado direito, as french toast de Stephanie Lee (foto: Stephanie Lee / i am food blog).

5. E já agora, dê uma de alentejano/a…

Migas e açorda, duas das bandeiras que a gastronomia alentejana mais hasteia, as duas feitas com uma trilogia de ingredientes com sotaque: azeite, alho e pão, claro está. As ervas aromáticas, mais precisamente os coentros, terminam o prato em beleza, ou melhor, em paladar. Estes alicerces gastronómicos são um legado deixado pela necessidade e pela fome. Usar sopas de azeite, alho e pão é uma tradição transversal aos países mediterrânicos: Espanha, Sul de França, Itália. Como explica Maria de Lurdes Modesto neste artigo, “comia-se para saciar a fome e manter a vida”. A melhor economia era a de aproveitar o pão da véspera. “São sopas que em todos estes países, ditos mediterrânicos, alimentaram trabalhadores braçais no campo, mas também, em casa, a família. São de sempre, não passam de moda.” Dito isto, faça uma açorda. Tenha em atenção que as variantes e receitas são muitas. A açorda tem um caldo fundamental e um piso: uma base de alho, coentros e sal amassada em almofariz. Pode ser servida com pão em cubos ou fatias — mas de preferência partido à mão. As migas são fritas na mesma base aromática (azeite, alho, coentros) e o caldo é acrescentado aos poucos até que o pão se transforme numa papa moldável.

6. …e de francês, non?

A açorda era uma sopa de pão. E a sopa é, provavelmente, tão antiga como os primórdios da culinária. É simples, nutritiva e reconfortante. Em França ela leva pão, mas é feita de cebola. Apesar da soupe a l’oignon ter sofrido atualizações ao longo da história, a que conhecemos actualmente, com pão e queijo, tem reminiscências medievais. No entanto, surpreendentemente, não figura no famoso livro do chef francês Escoffier, de 1903. Pouco importa, já que não faltam restaurantes franceses a servi-la, nem receitas online, como esta da Saveur.

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Se há conforto num prato, ele está entre rodelas de cebola e fatias de pão (foto: Helen Rosner / Saveur)

7. Enfim, roube receitas a todas as nacionalidades

Todos os países aproveitam, de alguma forma, um pão non grato. Em Itália — que partilha os genes latinos de Portugal — não faltam receitas de pão. Veja-se o exemplo da panzanella, uma macerado de pão com tomate que serve de salada fresca estival; a pappa al pomodoro, uma sopa toscana de pão e tomate ou mesmo o canederlli, uma espécie de dumpling que é comum não só no nordeste italiano, como em muitos países da Europa Central. Na Alemanha, por exemplo, estas bolinhas de pão chamam-se knödel. No caso dos doces, o mais popular, em todo o mundo, é o breadpudding, cujas variações geográficas são grandes. Se quiser, com vontade e dedicação, aprender mais receitas que reutilizam o pão, auxilie-se da Saveur, uma das maiores revistas de gastronomia mundiais. Aqui, encontra 40 receitas diferentes. Vai voltar a deitar pão para o lixo?