Faz agora 40 anos, dois acontecimentos marcaram profundamente a sociedade norte-americana, para perdurarem na sua memória colectiva.  No dia 30 de Abril de 1975, a queda de Saigão, com a derrota efectiva dos EUA na guerra do Vietname e o triunfo das forças comunistas; e a estreia de “Tubarão”, de Steven Spielberg, no dia 20 de Junho. À altura, e associando de forma arrevezada os dois acontecimentos, o crítico literário e teórico político marxista Fredric Jameson, escreveu sobre o simbolismo político do filme. O enorme esqualo representava, entre outros e à cabeça, o “medo” que os EUA tinham do comunismo e das forças revolucionárias “libertadoras” do Terceiro Mundo. Peter Benchley, o autor do livro em que “Tubarão” se baseou, editado um ano antes, faria um comentário gozão a esta análise: “Nunca pensei que o meu tubarão afinal fosse um “vietcong” aquático”.

“Trailer” original de “Tubarão”

https://youtu.be/4sWUjd4i0N8

“Trailer” em Lego

Muito se escreveu sobre as inúmeras peripécias e dificuldades da rodagem do filme, desde o mau funcionamento crónico dos três tubarões mecânicos, que levaram Spielberg a preferir filmar do ponto de vista do animal ou a sugerir a sua presença com a câmara na água, e mostrá-lo o menos possível;  até às constantes fricções no “set” entre o alcoólico Robert Shaw e Richard Dreyfuss, dois dos três principais intérpretes, juntamente com Roy Scheider; passando pelo facto de, no início, Steven Spielberg estar relutante em assumir a realização do filme, preferindo–lhe “Uma Mulher dos Diabos”, uma comédia passada durante a Lei Seca, com Gene Hackman, Burt Reynolds e Liza Minnelli, que acabou por ir parar às mãos de Stanley Donen, o co-realizador de “Serenata à Chuva”. E que quase não deixou rasto nas bilheteiras, enquanto “Tubarão” se transformava no filme mais rentável de sempre, até à estreia de “Guerra nas Estrelas”, em 1977. Um sucesso que permitiu a Spielberg fazer “Encontros Imediatos do Terceiro Grau” e ascender aos píncaros da indústria cinematográfica.

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Uma das cenas emblemáticas do filme

O crítico e escritor inglês Kim Newman realçou que “Tubarão” inscreve-se na categoria do filme de “terror animal”, em que o homem é atacado por criaturas da natureza, um ataque inexplicável e irracional ou do qual é o responsável directo, e que no cinema tem a sua origem, e padrão, em “Os Pássaros”, de Alfred Hitchcock (1963). Mas na base do filme de Spielberg, e do seu enorme impacto colectivo, está, simplesmente, linearmente, um dos arquétipos das mais antigas narrativas da humanidade: o eterno combate do homem contra o monstro (o tubarão é um animal que chegou até nós do fundo das idades, pois há provas da sua existência há 420 milhões de anos atrás).

Tema musical de “Tubarão”

“Tubarão” lida também com medos ancestrais, atávicos, colectivos, embutidos no nosso inconsciente há milhares de anos: o escuro, e o ambiente líquido, fundo e negro, onde estamos totalmente vulneráveis e se podem esconder o inimigo, o predador ou a criatura monstruosa saída do início dos tempos. Arquétipos e medos que Steven Spielberg potenciou, manipulou e amplificou com superior talento cinematográfico, fazendo com que “Tubarão” seja hoje um filme tão eficaz, incómodo e assustador como no dia da sua estreia, há 40 anos.

Quando ao som do ominoso tema musical de John Williams, espalhou o medo nos cinemas e nas praias dos EUA. Nesse Verão, muita gente preferiu não ir ao banho e há notícias de vários falsos avistamentos de tubarões nas duas costas do país. Quanto aos conservacionistas, deploraram a má publicidade que o filme deu aos tubarões, reduzindo-os a implacáveis devoradores de homens.

https://youtu.be/pC3bh0Yj-Fs

Documentário “Jaws-The Inside Story”

Embora não tenha inventado a pólvora em termos de terror, “Tubarão” inventou outra coisa: o “blockbuster” de Verão, tal como ainda o conhecemos hoje na sua forma mais dispendiosa, mastodôntica e tecnologicamente sofisticada, e o modelo de negócio que o sustenta. Até “Tubarão” se estrear, o Verão era a estação pobre da indústria cinematográfica americana, em que Hollywood se via livre dos monos que não iam dar dinheiro nem à lei da bala, estreados em meia-dúzia de cinemas, guardando para o Inverno e o Natal, a época nobre, o “bife do lombo” dos títulos de qualidade e de grande entretenimento.

Com estreia a contra-ciclo e em “wide release” – ou seja, em centenas de cinemas simultaneamente por todo o país, saturando o mercado -, apoiada numa intensa campanha nos media que incluiu, pela primeira vez, o recurso à televisão à escala nacional) (só aí a produção gastou 700 mil dólares, soma nunca vista), e outra campanha inédita, de promoção da edição de bolso do livro de Peter Benchley, em que o escritor e os dois produtores do filme, Richard D. Zanuck e David Brown apareceram nos principais programas de televisão e de rádio dos EUA, e ainda um “merchandising” variadíssimo, “Tubarão” transformou-se num fenómeno nacional, no filme a ver, recuperando os custos em apenas duas semanas e tornando-se na primeiro fita a lucrar 100 milhões de dólares.

O monstro marinho tinha criado um novo monstro, a superprodução estival assente num conceito narrativo tão linear como espectacular, e uma segunda frente de rendimento para Hollywood. Como escreveu o crítico Peter Biskind, “‘Tubarão’ foi o cavalo de Tróia com que os grandes estúdios começaram a reafirmar o seu poder”.

Entrevista a Steven Spielberg durante a rodagem

“Tubarão” teve três continuações, cada um pior do que a outra, e a que Steven Spielberg não esteve associado, dando, naturalmente, origem a imitações em rajada, nos EUA, no Japão ou em Itália, não só com toda a sorte de tubarões como também com orcas, crocodilos, polvos gigantes e peixes mutantes. De todos estes “ripoffs” ressalve-se o delicioso “Piranha”, de Joe Dante (1978), produzido pelo sabidão Roger Corman, eleito pelo próprio Spielberg como “a melhor das paródias a ‘Tubarão’”.

“Trailer” de “Piranha”

O esqualo mecânico Bruce é hoje uma das atracções do parque dos estúdios Universal e até deu origem a dois musicais “alternativos” no Canadá. Os 40 anos de “Tubarão” vão ser devidamente comemorados com a sua reposição em cerca de 500 cinemas norte-americanos, amanhã, dia 21, e no dia 24. Em 1975, os EUA perderam a guerra do Vietname. Mas ganharam um filmaço para a história do cinema,