Os atentados em Paris na sexta-feira passada ainda vão fazer correr muita tinta. Para lá das questões mais imediatas sobre quem são os terroristas, que ligações tinham ao Estado Islâmico e como planearam os ataques, há outros debates que ameaçam emergir. Eles têm a ver, essencialmente, sobre como vão ser a Europa e o mundo daqui para a frente.

1. A resposta à crise dos refugiados

As autoridades francesas e gregas confirmaram que o passaporte encontrado junto ao corpo de um dos terroristas mortos na sexta-feira era de um sírio, registado na ilha grega de Leros como refugiado no início de outubro. Depois, o governo sérvio confirmou que o mesmo passaporte foi usado para um pedido de asilo político no país. E os responsáveis governamentais da Polónia, ainda antes de este pormenor ser conhecido, já mostravam reservas quanto ao acolhimento de refugiados. 

Uma informação deste género é como atirar gasolina para um fogo já violento. Na Polónia, o anterior governo já não via com bons olhos ter de acolher 7.500 pessoas, a parte que lhe coube dos 160 mil refugiados que a União Europeia decidiu receber. Com a chegada ao poder do partido de direita Lei e Justiça, a oposição ainda é maior. “À luz dos trágicos eventos de Paris, não vemos que haja possibilidade política” de pôr em prática as decisões sobre este assunto tomadas pela Europa, escreveu num blogue o futuro ministro dos Assuntos Europeus, Konrad Szymański. Mais tarde viria a medir melhor as palavras, afirmando que a Polónia precisa de “garantias de segurança” antes de receber quem quer que seja. 

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A atitude foi seguida por outros políticos europeus, mesmo em países onde os governos já decidiram receber muitos refugiados. Na Alemanha, por exemplo, onde são esperadas entre 800 mil e 1,5 milhões de pessoas, Angela Merkel tem estado a ser fortemente criticada por querer receber tantos refugiados — mesmo por membros do seu partido. O líder do governo da Baviera, que é de coligação entre a CDU de Merkel e a União Social Cristã da Baviera, foi a uma convenção dos Democratas Cristãos criticar a chanceler. “Temos de saber quem está a entrar no nosso país”, disse Horst Seehofer, chegando mesmo a referir uma notícia de jornal na qual um responsável dos serviços secretos afirmava que muitos refugiados mantinham contactos com extremistas islâmicos. 

Ou seja, num momento em que o acordo europeu para o acolhimento de refugiados ainda não está completamente digerido e as muitas dúvidas de alguns Estados-membros se continuam a acumular, a notícia do passaporte pode atrasar a necessária ajuda aos milhares que não param de chegar à Europa e extremar ainda mais as posições do debate. “Não há necessidade de rever as políticas europeias em matéria de refugiados”, assegurou já neste domingo o presidente da Comissão Europeia, Jean-Claude Juncker.

O pormenor do passaporte deve, no entanto, ser olhado com cautela. Aaron Zelin, especialista em jihad, listou no seu blogue pessoal as doze ocasiões mais recentes em que o Estado Islâmico criticou os refugiados por saírem do Iraque e da Síria. Fugir “põe em causa a mensagem de que o califado é um refúgio”, escreve. Além disso, ainda está por confirmar que o passaporte pertencia mesmo a um dos terroristas (foi encontrado junto ao corpo) e se esse terrorista era a mesma pessoa que entrou na Grécia em outubro (muitos passaportes são roubados junto às fronteiras europeias). O The Guardian compilou ainda mais motivos pelos quais a história do passaporte dever ser olhada com precaução — e o jornal aconselha a esperar por conclusões antes de começar a culpar os refugiados.

Migrants and refugees walk down railroad track towards the Hungarian border near the northern Serbian town of Horgos on August 27, 2015. As Hungary scrambles to ramp up defences on its border with Serbia, refugees continued to surge into the country in record numbers, police figures confirmed. AFP PHOTO / ANDREJ ISAKOVIC (Photo credit should read ANDREJ ISAKOVIC/AFP/Getty Images)

Os especialistas acreditam que o movimento migratório proveniente do Médio Oriente ainda vai aumentar nos próximos meses ANDREJ ISAKOVIC/AFP/Getty Images 

2. A extrema-direita aqui tão perto

Ataques terroristas de inspiração islâmica são frequentemente usados por líderes de partidos de extrema-direita para dramatizar ainda mais o discurso. Em França, isso aconteceu com a Frente Nacional a seguir ao ataque ao Charlie Hebdo e também desta vez. “É indispensável que França volte a ser dona das suas fronteiras, definitivamente”, afirmou Marine Le Pen num discurso neste domingo.

A líder da Frente Nacional defende que o Estado deve investir mais em rearmamento e em Defesa, ao mesmo tempo que aposta na informação sobre potenciais terroristas. Marine Le Pen considera mesmo que a solução para o problema do fundamentalismo islâmico passa pelo encerramento de mesquitas, a expulsão de imãs e a retirada da nacionalidade francesa a suspeitos de atos terroristas. 

A mensagem mais forte é, porém, a de que as fronteiras não podem continuar abertas. E chegam também de um dos países mais eurocéticos da União. “Alguns parceiros europeus [de Hollande], incluindo o Reino Unido, já há meses que dizem ao eixo franco-alemão que manda na Europa que o ideal de liberdade de movimentos, concebido numa altura em que o terrorismo islâmico era desconhecido, não é praticável”, escreveu Simon Heffer, um dos mais relevantes colunistas do conservador The Telegraph. “Agora, parece não apenas impraticável como letal”, remata o analista, salientando a importância da ajuda estrangeira ao ataque, ainda que este tenha sido levado a cabo por franceses.

Com as eleições regionais de França mesmo à porta (a 6 e 13 de dezembro) e as presidenciais a ano e meio de distância, Marine Le Pen não se coibiu de falar do programa eleitoral do seu partido este domingo, embora as ações de pré-campanha tenham sido suspensas. Se, nas regionais, as sondagens só dão à Frente Nacional a vitória numa região, nos estudos de opinião para as presidenciais a vitória de Marine Le Pen é dada praticamente como garantida. Exceção feita para uma sondagem publicada na tarde de sexta-feira — antes dos atentados, portanto. Aí, Marine Le Pen surge em segundo lugar, apenas 1,5 pontos percentuais atrás de Alain Juppé, ex-primeiro-ministro francês.

Marine Le Pen Front National statement after Paris attacks

Marine Le Pen esperou por domingo para falar, mas não pelo fim do luto nacional para elogiar que o programa eleitoral que propõe

3. A Europa ainda se consegue proteger?

Os atentados de sexta-feira não foram obra do acaso. Os terroristas tinham metralhadoras, cintos explosivos e carros à disposição. Sabiam onde atacar: as esplanadas repletas de gente, o estádio e a sala de concertos completamente lotados. Se o plano era complexo, porque é que os serviços secretos não conseguiram perceber a tempo? “É extremamente difícil defendermo-nos deste tipo de ataques”, comenta Yves Trotignon, ex-agente antiterrorismo francês, ao The Guardian. E essas dificuldades prendem-se precisamente com a complexidade dos planos.

A diferença entre estes ataques e o que aconteceu em janeiro na redação do Charlie Hebdo parece ser uma certa “dose de amadorismo”. Nessa altura, os irmãos Kouachi sabiam precisamente quem queriam matar e estavam bem armados, mas a fuga demonstrou que não tinham pensado em tudo. Também o ataque a um supermercado judaico, logo no dia seguinte, parece ter sido mais impulsivo do que planeado, embora se tenha chegado à conclusão de que ambos os atentados estavam coordenados. 

Depois do Charlie Hebdo, França tomou uma série de medidas para reforçar os serviços secretos e tornar mais eficazes as unidades contraterrorismo. Só que a burocracia tem impedido uma implementação mais rápida dessas decisões e, neste momento, as duas mil vagas abertas para os serviços de segurança continuam por preencher. Um membro do novo partido de Sarkozy, Les Républicains, diz mesmo que “nada foi feito” entre janeiro e agora. 

Só que impedir ataques destes envolve uma cooperação europeia que, dizem os especialistas, ainda está longe de ser perfeita. Os serviços secretos franceses são fortes a arranjar informações sobre o Norte de África e os americanos têm mais facilidade na Síria e no Iraque, e ambos trocam dados entre si, mas isso parece não acontecer tão facilmente entre países da União Europeia. “A partilha de informação é realmente o ponto mais desafiante na Europa. Fez-se muito trabalho, especialmente depois do Charlie Hebdo, mas entretanto parou”, disse ao Financial Times um diplomata que trabalha junto da União Europeia. Isto significa que há muita informação, ela está é espalhada por muitos locais.

Por outro lado, a quantidade de ameaças que se avolumam parece deixar a descoberto um problema de falta de meios. Em janeiro, as autoridades francesas admitiram que os irmãos Kouachi, apesar de serem considerados suspeitos, já não estavam a ser vigiados há algum tempo devido à necessidade de concentrar os esforços de vigilância nas pessoas que regressam da Síria. A situação está longe de ter melhorado. São precisos 25 agentes para vigiar uma só pessoa durante 24 horas, “por isso pode ver a dificuldade”, diz ao The Telegraph Jean-Charles Brisard, responsável por um centro de análise do terrorismo. No Reino Unido, os serviços secretos dizem estar a trabalhar sem parar há meses, e que, em média, uma pessoa é detida todos os dias, suspeita de estar a preparar atentados terroristas. 

TO GO WITH AFP STORY BY JOSE MIGUEL CALATAYUD A picture taken on April 15, 2013 shows a Syrian man in the Al Raqqa countryside, who until three months ago was a farmer, pouring crude oil brought from Deir Ezzor province into a pit where it will be distilled as part of the refining process to produce fuel. Final products such as benzine and diesel are then sold to locals. Deir Ezzor contains the largest energy reserves in Syria, which produced some 420,000 of barrels of oil a day before the United States and the European Union banned the import of Syrian petroleum in 2011. AFP PHOTO/ALICE MARTINS (Photo credit should read ALICE Martins/AFP/Getty Images)

Os serviços de segurança franceses estavam mais preocupados com os franceses que regressavam da Síria, em janeiro, quando se deu o ataque ao Charlie Hebdo. ALICE Martins/AFP/Getty Images

4. A resposta militar

Este domingo, França lançou uma grande ofensiva, um “ataque maciço”, a Raqqa, a cidade síria a que o Estado Islâmico chamou a capital do seu autoproclamado califado. Foram destruídos um centro de recrutamento, um centro de treino, um posto de controlo e um posto de abastecimento do grupo terrorista, naquele que é considerado um dos maiores bombardeamentos franceses na Síria. 

Bombardear a Síria pode ajudar a resolver o problema, mas não o resolve completamente. Isto porque há cerca de 3.800 pessoas “radicalizadas” que vivem em França. Aliás, o único terrorista até agora identificado, Ismael Omar Mostefai, nasceu e viveu toda a vida a pouca distância de Paris. Por isso, a ameaça está também dentro de fronteiras. Ora, François Hollande e Manuel Valls declararam que França está em guerra contra o terrorismo e que o Estado Islâmico tem de ser “aniquilado”.

Para isso acontecer, os líderes ocidentais querem apostar ainda mais em ataques militares na Síria, mas estão a ponderar mudar de estratégia. Nos Estados Unidos, embora não se diga abertamente, há a convicção de que os bombardeamentos aéreos pouco têm feito até agora. E que aumentar a intensidade e frequência desses bombardeamentos pouco ajudará nesse cenário. Ao mesmo tempo, a Rússia afirma estar a fazer ataques aéreos mais eficazes, mas o Ocidente recusa-se a apoiar Vladimir Putin, que está empenhado em apoiar Bashar Al-Assad, que tanto Obama como Cameron ou Hollande querem ver pelas costas.

Se a queda do avião russo na península do Sinai há umas semanas e os atentados em Paris na sexta-feira vão fazer os líderes mundiais mudar efetivamente a estratégia de combate ao Estado Islâmico, ninguém parece saber. O certo é que, mesmo depois de abatido um dos mais importantes hackers e propagandistas do EI, uma das figuras mais odiadas do mundo (Jihadi John) e de até o chefe supremo do grupo terrorista ter sofrido um ataque (a que sobreviveu), o terrorismo continua. Ajudado por governos fracos ou coniventes, por células espalhadas pela Europa e por grupos congéneres que enxameiam o Norte de África e o Médio Oriente, o fundamentalismo islâmico tem continuado a provocar vítimas ocidentais e a espalhar o terror pelo mundo.