Nem todos os heróis são humanos e alguns lutam com quatro patas. Foi o caso de Diesel, a cadela de sete anos que morreu depois de entrar no apartamento em Saint-Denis onde estavam refugiados terroristas, entre eles o cérebro dos ataques que mataram 129 pessoas na sexta-feira passada em Paris. 

Diesel trabalhava desde pequena com a Polícia Nacional francesa. Tinha tudo o que um pastor belga a serviço da investigação precisa de ter: um faro muito apurado, um temperamento sociável e a paciência de quem defende o próximo. Diesel entrou no apartamento em Saint-Denis, pronta a avaliar o nível de ameaça no local e avisar os colegas humanos se pudessem entrar. Foi morta mal entrou na casa, quando uma mulher terrorista acionou os explosivos presos à cintura e se fez explodir, danificando parte do prédio.

Na rede social Twitter, a polícia francesa anunciou a morte de Diesel dizendo que o papel dos cães polícia é “vital” para o sucesso das operações das autoridades. Ficaram as imagens da pastor belga apoiada nas patas traseiras com a bandeira francesa na boca. E o aviso de que há muitos outros cães que trabalham para manter a segurança e fazer cumprir a lei.

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Feeling é um exemplo português, que acompanhou a Polícia Aérea numa missão no Afeganistão em 2005. “O sucesso foi imediato. Toda a gente adorou o cão, tem aquela imagem de cão fofinho que normalmente não associamos a um animal a serviço da polícia”, contou o Major Paulo Mineiro ao Observador. É que este cão de pelo preto brilhante, orelhas baixas e olhar gentil foi, acima de tudo isso, o labrador responsável pela deteção de explosivos quando a Insurgência Talibã ganhava terreno.

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A Força Aérea Portuguesa utiliza cães nas suas atividades desde a guerra colonial, tendo sido os paraquedistas a primeira equipa a adotar animais para serviços de segurança. No entanto, a Policia Aérea já treina equipas de cães há 30 anos. “A necessidade de criação de um Centro Cinotécnico assentava essencialmente na ideia de dotar a Força Aérea das estruturas próprias condizentes com as suas responsabilidades reais no âmbito da segurança das suas unidades, aproximando-se das metodologias de emprego operacional e instrução constantes de doutrina publicada por países da NATO“, explica a Força Aérea Portuguesa no site.

À semelhança do que acontece com os outros cães militares, Feeling foi treinado no Aeródromo de Manobra Nº1, em Ovar, no Centro de Instrução Cinotécnico do Corpo de Polícia Aérea, criado em 1986. “Este treino é fundamental, um complemento fabuloso ao trabalho da polícia”, afirma o major José Vicente ao Observador.

De acordo com José Vicente, os cães são adotados a um criador depois de analisados por um veterinário e um militar, que vão conferir as capacidades natas dos cães. Até completarem 18 meses de vida, não passam por nenhum treino específico, mas vivem com o militar com quem vão constituir binómio: “Isto vai permitir aos animais afeiçoarem-se ao dono, ganharem respeito por ele e detetarem facilmente o seu cheiro”, explica o major. 

A seguir passam por um curso de 10 a 12 semanas onde treinam a obediência, a guarda e a capacidade de defesa através das ordens do dono. O treino é essencialmente físico, com exercícios de obstáculos que podem durar várias horas: “O treino não termina enquanto os cães não atingirem os objetivos delineados para aquele dia, porque caso contrário nunca compreenderão como se devem comportar”, explica José Vicente.

O treino de um cão para as equipas cinotécnicas funciona com base nas experiências de Ivan Pavlov sobre psicologia da aprendizagem. Se o cão foi repetidamente estimulado, ele reage por antecipação perante uma situação em que reconhece a possibilidade de receber uma recompensa. “Noutros países, os cães costumam ser recompensados com comida ou objetos, mas cá em Portugal a recompensa costuma ser a carícia ou o tom de voz”.

Na Força Aérea, a equipa cinotécnica tem cães militares especializados em três áreas: guarda, deteção de explosivos e deteção de estupefacientes. As raças mais eficientes para guarda na FAP são os pastores alemães: “São cães mais equilibrados, conseguem ser sociáveis ou intransigentes, conforme as necessidades”, descreve José Vicente, acrescentando que em Portugal existem 150 cães de guarda a serviço da Polícia Aérea. Para estas funções, raças com temperamento mais agressivo, como os Rotweiller ou Pitbull, são menos fáceis de treinar. “É importante que os cães de guarda sejam altamente obedientes e que reajam apenas por ordem no militar que os acompanha“, acrescenta.

Os cães destacados para deteção de explosivos costumam ser aqueles com faro mais apurado, como é o caso dos labradores: “Esta raça é muito equilibrada, são pacientes e pouco impulsivos”. Quando detetam um dos componentes típicos dos explosivos – normalmente TNT – os cães militar sentam-se, esperam por novas ordens e recebem a sua recompensa. O mesmo acontece com os cães que detetam droga, também eles preferencialmente labradores. “Eles não se viciam no cheiro da droga porque estão completamente focados na recompensa – uma carícia, um momento de brincadeira ou comida – que vão receber se obedecerem ao dono”, esclarece José Vicente.

A Guarda Nacional Republicana também trabalha com equipas de cães polícia. Trata-se do Grupo de Intervenção Cinotécnica (K9) da GNR, gerida pelo major Costa Pinto, com quem o Observador também conversou. De acordo com o militar, são muitas as raças com capacidade para trabalhar com a polícia: “Temos mecanismos para testar as características necessárias, mas há grupos de raças que têm um maior número de exemplares com atributos físicos e comportamentais que procuramos”.

Essas características dependem da função que os cães vão ocupar. Os cães de segurança devem ter grande porte (como o pastor alemão ou o cão de fila S. Miguel), enquanto os cães de deteção, de drogas e explosivos, podem ser mais pequenos (como o cocker spaniel, o golden retiver, o labrador ou o cão d’água português).

Há, no entanto, uma raça mais polivalente: é o pastor belga, precisamente a raça de Diesel. Costa Pinto explicou ao Observador que esta cadela terá sido treinada para técnicas de assalto e intervenção tática, sendo especializada em operações especiais. “Estes cães são treinados para localizar o adversário, mesmo que ele esteja escondido em sítios pouco prováveis: quando encontram odor humano avisam o militar com quem constituem binómio”, conta o major da GNR.

Alguns traços devem ser transversais aos animais que trabalham em parceria com os militares humanos: ausência de fobias e o faro muito apurado são essenciais. “Também é importante que sejam obedientes por natureza, sem temperamento agressivo e equilibrados“, descreve Costa Pinto. E devem, por natureza, ser “corajosos, confiantes, disciplinados e silenciosos“.

O treino dos cães de assalto e deteção de explosivos, que trabalham mais de perto com unidades de segurança especiais como os RAID franceses (Recherche, Assistance, Intervention, Dissuasion, a elite da Polícia Nacional gaulesa), também é baseado em comportamentos pavlovianos. “Quando são preparados para detetar droga ou um explosivo, por exemplo, a última coisa que estes cães vão conhecer é o odor“, explica o major Costa Pinto: à semelhança do que acontece nas equipas cinotécnicas da Força Aérea, os cães da GNR começam a ser trabalhados através de estratégias de reforço condicionado, em que o animal é recompensado com um brinquedo quando se comporta em conformidade com as exigências.

Quando esse comportamento se torna sistematizado, o nível de exigência aumenta: “Deixamos de recompensar o cão com tanta regularidade, para que ele se esforce mais nas tarefas. Quando ele atinge os objetivos, a recompensa vai ser proporcional ao sucesso do seu trabalho“, conta o major da GNR. Só nesta fase é que os cães tomam contacto com o odor. No caso dos explosivos, os cães desta instituição conseguem reconhecer 26 odores que são, não apenas os elementos típicos dos explosivos (como o TNT), mas também compostos (como a mistura de alumínio com outro componente, por exemplo). 

A Guarda Nacional Republicana trabalha com 238 binómios e 263 cães que são preparados num centro de treino em Lisboa. Quando chegam à reforma, estes animais podem ser adotados pelos próprios militares (algo que acontece com muita regularidade), que entretanto recebem um novo cão para trabalhar.

Há dois anos, a GNR perdeu um militar, Bruno Chainho, e um cão polícia que esteve envolvido no caso de um homem barricado num restaurante no Pinhal Novo, depois de o sequestrador (morto mais tarde pelos polícias) ter deflagrado alguns engenhos explosivos.