Cada vez que falava dizia o mesmo. Era como se tivesse um pacto vitalício com duas palavras, preto no branco, um acordo de cavalheiros para elas lhe saírem sempre que deitasse algo pela boca fora. “My precious.” Estava viciado no que um anel enrolado no dedo lhe dava. Sentia-se o maior, todo-poderoso, aditivado por estar como estava. Numa posição mandona, detentor de algo que mais ninguém tinha. Envelheceu assim, ganhou anos e perdeu cabelo, colou-se ao conforto do sofá do poder. Achou que aquela sensação existia para ser sua e por isso teve uma reação alérgica quando ficou sem ela. A relação entre Gollum e um anel que passou de livro (na trilogia do “Senhor dos Anéis”) para filme podia ser o parente ficcionado da história real entre Sepp Blatter e a FIFA.

Um adorava o facto de poder ser invisível quando enfiava um anel à volta do dedo, o outro acreditava sê-lo enquanto era acusado de fazer coisas que a lei recriminava. O poder consumiu o primeiro. Encolheu-o, envelheceu-o, nublou-lhe a sanidade e fê-lo fazer tudo para o ter de volta. O poder não fez tanto ao segundo, mas deu-lhe uma coisa — a polémica. Sepp Blatter esteve 17 anos a mandar na organização que manda no futebol mundial e o seu reinado acabou com a FIFA no estado mais desacreditado de sempre.

É com este suíço de 79 anos na presidência que, em 2010, surgem suspeitas de que os Mundiais de 2018 e 2020 foram parar à Rússia e ao Qatar devido a subornos. É com ele no comando, que a FIFA contrata um juiz norte-americano que, mais de um ano depois, se queixa que a organização ignorou e escondeu as conclusões da sua investigação. É com Blatter a mandar que, em dezembro de 2015, a dois dias das ser reeleito no cargo pela quarta vez, 14 dirigentes da FIFA são detidos por suspeitas de corrupção e subornos. Já durariam há décadas e eram avaliados em mais de 134 milhões de euros. É um escândalo, mas a FIFA alega que nada tem a ver com o presidente. Dois dias depois, Joseph Blatter é reeleito (com 133 votos), mas deixa outros quatro dias passarem até se demitir.

O suíço diz que “o mundo do futebol não aceitou” continuar a tê-lo no lugar precioso e defende que a FIFA precisa “de uma mudança profunda”. Coloca o lugar à disposição e urge a entidade a ser rápida para agendar novas eleições. Três meses passam até a justiça suíça acusar Blatter de corrupção e o começar a investigar. Em outubro, a FIFA segue o exemplo e o Comité de Ética suspende-o por 90 dias. No final de dezembro, decide que não mais o suíço chamaria “my precious” à FIFA, olhando-a de cima — a FIFA bane-o de toda e qualquer atividade ligada ao futebol. “Não sou um demónio, nem a FIFA é uma organização mafiosa”, alega Blatter, dias antes de saber da novidade.

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Por essa altura já se sabia que as eleições para os 209 membros da entidade escolherem um novo presidente seriam a 26 de fevereiro. Esta sexta-feira. Michel Platini não é um dos candidatos porque também foi banido do futebol por seis anos, por ter aceitado um pagamento ilegal a rondar os 1,8 milhões de euros, por serviços prestados a Joseph Blatter (a quantia foi paga pelo suíço, mas usando dinheiro da FIFA). Há cinco homens na corrida à presidência da organização cujos últimos três líderes estiveram, cada um, mais de 12 anos agarrados ao poder — 13 anos para Stanley Rous (1961-74), 24 anos para João Havelange (1974-98) e 17 para Blatter (1998-2015). E o Observador resume-lhe em baixo quem poderá ser o próximo a chamar “my precious” à FIFA.

Gianni Infantino

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Quem costuma andar de olho no futebol reconhecê-lo-á de tudo quanto é cerimónia da UEFA. Por norma, era sempre o mesmo homem calmo, careca e poliglota a apresentar as regras dos sorteios para as competições da entidade. Fosse a Liga dos Campeões, o Campeonato da Europa ou a Liga Europa, este ítalo-suíço que fala inglês, francês, espanhol, alemão e italiano estava lá.

Gianni Infantino é secretário-geral da UEFA desde 2009 e tornou-se candidato à presidência da FIFA no momento em que Michel Platini previu que não o deixaram ser (outubro de 2015). Tem 45 anos, é amigo do ex-craque francês e foi a solução que a entidade arranjou para concorrer à FIFA. É o candidato que deseja estender aos Mundiais o que a UEFA fará aos Europeus — que passe a haver 40 equipas em vez de 32 e que a competição se jogue em várias regiões e não apenas num país.

Também é o homem que a Federação Portuguesa de Futebol apoia, além de Luís Figo e Michael Van Praag, que chegaram a ser concorrentes de Blatter no ano passado, quando o suíço foi reeleito. Gianni Infantino — que também tem José Mourinho e Deco como “amigos” — deverá ter muitos votos a virem das associações europeias, com quem já trabalha há muito tempo: antes de chegar à UEFA passou alguns anos como secretário-geral do Centro Internacional para Estudos Desportivos (CIES, na sigla inglesa), um observatório que se dedica a estatísticas sobre tudo e mais alguma coisa que tenha a ver com futebol.

Ali Al Hussein

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Foi o candidato que mais tempo fez frente às tramóias de Joseph Blatter. Em maio do ano passado, este príncipe da Jordânia apenas desistiu em pleno Congresso da FIFA, quando os presidentes das 209 associações nacionais de futebol se estavam a preparar para uma segunda volta nas eleições. “Estou à disposição das associações que querem uma mudança, incluindo todas as que tiveram medo de mudar”, disse, então, quando soube da demissão do suíço.

Ali Al Hussei é o terceiro filho do falecido rei Hussein, da Jordânia, e preside à federação de futebol do país. Sempre foi um crítico de Blatter, antes e depois de ser afastado da vice-presidência da FIFA. Mas nem a oposição ao suíço, numa altura em que nunca a posição de Blatter estivera tão frágil, lhe valeu mais do que os 73 votos que recebeu.

Salman Bin Ibrahim Al Khalifa

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Não é embirração, mas escrever sobre este xeque do Bahrein, membro da família que governa no país, é mencionar algumas suspeitas que não lhe são muito simpáticas. Assim que passou no teste de integridade que a FIFA faz a todos os candidatos a candidatos, o Instituto pelos Direitos e Democracia no Bahrein enviou uma carta à entidade. “Ao tentar ver-se livre desta polémica de corrupção, a FIFA pode agora trocar um alegado corrupto por outro”, lia-se, nesse pedaço de papel.

A mensagem era esta, porque Salman Bin Ibrahim Al Khalifa há muito que é acusado de uma coisa: de ter contribuído, como presidente da Federação Asiática de Futebol (AFC, na sigla inglesa), para que cerca de 150 pessoas, entre atletas, treinadores e árbitros, fossem detidas e torturadas. Tudo por, alegadamente, terem participado nas manifestações anti-regime que, em 2011, aconteceram no Bahrein. Resumindo, este candidato, que ainda é um dos vice-presidentes da FIFA, é acusado de ter sido autor de crimes contra a humanidade.

Salman é primeiro do Rei do Bahrein e quando ainda longe estava dos 50 anos que hoje tem, chegou a viver em Londres, enquanto estudava contabilidade. Foi por lá que encheu a barriga da paixão que tem pelo Manchester United e decidiu que o que queria mesmo era dedicar-se aos bastidores do futebol. A imprensa, sobretudo a britânica, tem-no colocado como o favorito para suceder a Joseph Blatter. Deverá ter os votos das 46 associações de futebol que integram a AFC e isso já será uma grande ajuda.

Jérôme Champagne

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Antes das eleições de maio, no ano passado, este francês foi dos primeiros a assumir-se como candidato. Mas teve de passar pela confissão de admitir que nem o apoio de cinco federações de futebol — o mínimo exigível para um candidato ser oficializado pela FIFA — conseguiu reunir. Por isso, Jérôme Champagne já progrediu (oito associações estão oficialmente atrás dele), embora as hipóteses que lhe reconheçam ainda sejam mais do que diminutas.

Porque o gaulês, de 57 anos, é quase uma contradição em forma de candidato. Defende coisas boas, que o senso comum vê como corretas: a publicação do relatório do juiz norte-americano, Michael Garcia, que investigou os processos de atribuição dos Mundiais à Rússia e ao Qatar, a redução das vagas europeias na qualificação para Campeonatos do Mundo, a criação de novas estruturas que retirem competências ao comité executivo da FIFA, são exemplos. Mas, depois, é criticado pelo passado que não o deixa ser conhecido apenas pelo tipo que é hoje.

Champagne passou 11 anos na FIFA, entre 1999 e 2010, como vice-secretário-geral da organização. Dizem que era os olhos e os ouvidos de Joseph Blatter no futebol, viajando muito para manter os contactos que o suíço prezava. Foi demitido da entidade quando se começou a ouvir falar do escândalo dos subornos de Mohammed Bin Hammam, o antigo vice-presidente qatari da FIFA que a Comissão de Ética baniu do futebol. É por isso que há quem acuse Jérôme de ser um cavalo de Tróia montado por Blatter — para entrar silenciosamente na entidade e fazer o que o suíço não pode, por estar fora dela para sempre.

O francês, que chegou a ser diplomata do país do Omã e em Cuba, farta-se de criticar a corrupção e a imagem que hoje mancha a FIFA. Quer tornar públicos os salários dos algos cargos da entidade e divulgar os relatórios e contas da organização (que continua a declarar ter fins não lucrativos). Mas a colagem que lhe fazem a Joseph Blatter poderá ser forte de mais para tornear.

Tokyo Sexwale

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O passado do sul-africano, de 62 anos, fá-lo ser talvez o candidato mais querido entre o público, que não terá qualquer voto na matéria. Tokyo Sexwale esteve durante anos enclausurado em Robben Island, a prisão remota de uma ilha ao largo da Cidade do Cabo, onde coincidiu com Nelson Mandela. Em 1994, após este ser o primeiro presidente democraticamente eleito (e negro) no país, Sexwale foi governador de Gauteng, província que engloba as cidades de Joanesburgo e Pretoria, antes de ser ministro do Urbanismo (2009-13).

É uma figura carismática, feroz opositor do apartheid — regime de segregação racial que governou durante 46 anos na África do Sul — e que, nos últimos anos, dirigiu o organismo que a FIFA dedicou ao conflito israelo-palestiniano. Tokyo Sexwale tem uma dose equilibrada entre experiência de gestão empresarial (tem uma fortuna avaliada em mais de 100 milhões de euros na área mineira) e conhecimento de como a FIFA funcionou nas últimas décadas (trabalhou no comité que organizou o Mundial de 2010).

Sexwale teria boas hipóteses de lutar pela presidência, caso a Confederação Africana de Futebol, há três semanas (escreveu o The Guardian), não se tivesse reunido para confirmar o apoio a Al Khalifa. É verdade que as 54 associações que a integram podem mudar de ideias, mas é pouco provável.