Do Best. Maradona good, Pelé better, George Best. Na Irlanda do Norte, Maradona é bom, Pelé melhor e George é o maior. É do Best, portanto. Embora George Best pertença àquele naipe de jogadores sem um único Mundial nas pernas, como Di Stéfano, os norte-irlandeses idolatram-no como um deus. Os adeptos do Manchester United idem. Caramba, até Johan Cruijff.

Quarta-feira, 13 de Outubro de 1976. Cruijff, então com 29 anos, está no pico da forma, figura maior do Barcelona e já eleito três vezes o melhor da Europa com a Bola de Ouro da revista France Football (1971, 1973 e 1974). Best, por seu lado, está já na curva descendente da carreira. Aos 30 anos, o irreverente quinto Beatle, como é alcunhado desde aquele bis em 11 minutos ao Benfica, na Luz, pelo United (5-1), em Março de 1966, já emigrara para os EUA, depois de abdicar do profissionalismo dois anos antes.

“Era regras e mais regras. Eu só queria jogar à bola e eles [dirigentes e treinadores do United] impunham horários para treinos, estágios, concentrações. Não estava para aquilo.”

Desabafa o irreverente Best, que, entre 1974 e esse jogo de Roterdão, faz um total de 35 jogos, entre África do Sul (Jewish Guild), Inglaterra (Fulham), Irlanda (Cork City) e EUA (Los Angeles Aztecs). Um globetrotter, está mais que visto.

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Em 1976, o futebol é outra coisa, menos impessoal e mais romântico. Não há cá “prima donas” nem seguranças para impedir quem quer que fosse de se aproximar de quem quer que seja. Por isso mesmo, os jornalistas pernoitam no mesmo hotel da selecção nos jogos fora, convivem com os jogadores e até (espante-se!) dividem o mesmo autocarro na viagem do hotel para o estádio. Pois é isso mesmo que sucede a um jornalista inglês do Daily Express, que acompanha todos os movimentos do Manchester United na altura em que Best ofusca nomes como Denis Law (Bola de Ouro 1964) e Bobby Charlton (Bola de Ouro 1966).

“O primeiro objectivo era ter os números de telefone de cada jogador do plantel. Fiquei com a agenda completa. Todos eles me deram um número. O Best deu-me 19. O da casa da mãe biológica, o da casa da mulher que cuidava dele em Manchester, que ele considerava uma espécie de mãe, os do bares onde costumava ir, os dos melhores amigos e alguns, poucos, de mulheres”, conta Bill Elliot. Fenómeno. O Best, queremos dizer (e, vá, a sua generosa lista telefónica)

De volta a 1976, com Elliot na primeira pessoa. “Sentei-me ao lado dele, no autocarro para a banheira de Roterdão. Cruijff estava no auge. Best não. Perguntei-lhe o que achava do holandês e ele respondeu-me outstanding [fora de série]. ‘Melhor que tu?’, arrisquei. Ele olhou para mim e deu uma gargalhada. ‘Estás a brincar comigo, não estás? Eu digo-te o que vou fazer ao Cruijff esta noite. Vou fintá-lo na primeira oportunidade que tiver’ e ambos nos rimos. Um par de horas depois, os jogadores norte-irlandeses foram anunciados um a um. Pat Jennings, o guarda-redes, é o primeiro a sair do túnel para o relvado. Best é o último. O megafone soltou ‘e agora, número 11 Georgie [grande pausa] Best’. E ele lá aparece, acompanhado de uma loura deslumbrante, daquelas raras, com uma rosa na mão. Devido à sua natureza, é-lhe impossível não dar espectáculo. Vai daí, Georgie aproxima-se dela, tira-lhe delicadamente a rosa, beija-lhe a mão como um cavalheiro e corre para o meio do campo com o braço bem levantado. O público, mais animado que nunca, aplaude a acção.”

[os quatro golos do Holanda – Irlanda do Norte de 1976]

Vamos lá a isto. Começa o jogo, de qualificação para o Mundial-78. A Holanda é francamente favorita. Joga o futebol total e acumula os títulos de vice mundial (1974) e europeu (1976). A Irlanda do Norte está como Best, na mó de baixo. Há ali um ou outro talento a despontar, como o guarda-redes Pat Jennings, que jogaria o Mundial-86 com 41 anos, e é só. Aos quatro minutos, 0-1 de McGrath. A Holanda perde em casa. E agora? Bola ao meio e cá vai disto. Ou talvez não. A Holanda volta a perder a bola. Começa aí o espectáculo.

“Best recebeu a bola no lado esquerdo. Em vez de a cabecear para iniciar um ataque pelo seu extremo, dominou-a com o peito e foi para dentro. Fintou três holandeses até chegar a Cruijff, no lado oposto do campo, o direito. À frente de Johan, mexeu os ombros duas vezes para um lado e para o outro, como se fosse fintar, e, enquanto isso, colocou-lhe a bola entre as pernas, recolhendo-a de seguida, com o punho erguido. Só alguns jornalistas entenderam aquilo. Eu tive a sorte de ser um deles.”

Cruijff, que até marca nessa noite, não leva a mal o atrevimento de Best. Nem poderia. “Lembro-me desse lance e desse jogo, que acabou 2-2”, recorda o holandês no dia em que Best morre, em Novembro de 2005. “Dentro do campo, ele era um louco são. Fora dele, um bom rapaz. No Verão desse ano [1976], passámos as férias no mesmo sítio, em Marbella. Aliás, esse Verão e muitos outros. E depois ainda nos encontrámos nos EUA. Um dia [22 de Julho de 1980], eu pelos Washington Diplomats e ele pelo San Jose Earthquakes fizemos um jogo inesquecível, que acabou 5-4 para a minha equipa. Cada um de nós marcou um golo.”