Paulo Portas tem jeito para slogans que ficam no ouvido. Um dos últimos que criou no final de 2015 dizia respeito a Catarina Martins, Jerónimo de Sousa e Heloísa Apolónia: os BFF de António Costa. Não sabia o ex-líder do CDS que meses mais tarde o verdadeiro Best Friend Forever do primeiro-ministro, Diogo Lacerda Machado, estaria no centro da agenda política para causar o primeiro grande embaraço a António Costa e a motivar críticas duras de “sobranceria” do Bloco de Esquerda e da necessidade de defender o interesse público argumentada pelo PCP. Esta quarta-feira, na Comissão Parlamentar de Economia, será a vez de ouvirmos de viva voz, em direto e a cores, a versão do BFF de António Costa.

A polémica que envolve o advogado Diogo Lacerda Machado foi motivada pelo secretismo que envolveu a sua colaboração com o governo e acabou exponenciada pelas explicações do próprio primeiro-ministro numa entrevista à TSF/Diário de Notícias. Apesar de assumir que tinha celebrado um contrato com o seu melhor amigo, o primeiro-ministro não escondeu que o fez contrariado. Mais: não via necessidade de tal contrato para receber a ajuda de Lacerda Machado de forma “a resolver muitos problemas” do Estado: “Desculpe lá! Acho simplesmente um dinheiro que podia não ser gasto”, afirmou.

Hoje, após a libertação do contrato por parte do gabinete do primeiro-ministro, já conhecemos os termos do contrato que Diogo Lacerda Machado assinou com o Estado:

  • Vai emitir pareceres jurídicos sobre qualquer tema escolhido pelo gabinete de António Costa, prestar consultoria em processos negociais, elaborar relatórios, acordos, memorandos e outros documentos que lhe sejam pedidos;
  • Terá um salário bruto de 2.000€ + IVA;
  • Todas as comunicações entre Diogo Lacerda Machado e o primeiro-ministro ficarão por escrito;
  • O prestador de serviços obriga-se a guardar confidencialidade de toda a informação recebida.

No entanto, subsistem várias questões em aberto.

As ligações de Stanley Ho aos futuros acionistas chineses da TAP

É um dos temas que o PSD — requerente da ida de Diogo Lacerda Machado ao Parlamento –, mais tentará atacar.

Expliquemos o contexto. O mercado brasileiro ficou a saber, a 24 de novembro de 2015, que os chineses da Hainan Airlines, Co. Ltd (HNA) tinham comprado 24% da Azul de David Neeleman por 450 milhões de dólares (398,2 milhões de euros). A aquisição foi concretizada após os reguladores portugueses terem dado parecer positivo à compra pela Atlantic Gateway (consórcio da qual a Azul faz parte) de 61% do capital social da TAP, SGPS.

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E o que tem isso a ver com Diogo Lacerda Machado?

Uma primeira explicação reside no facto de o melhor amigo de António Costa trabalhar há anos na Geocapital, sociedade que tem o empresário macaense Stanley Ho como principal acionista. Lacerda Machado é mesmo um dos principais administradores desta empresa de capitais chineses.

Ora, Stanley Ho partilha capital com a HNA numa companhia aérea na Ásia: a Hong Kong Express, que veio da dar lugar à HK Express. Esta companhia aérea low-cost foi criada em 2005: a HNA, segundo diversos sites especializados em aviação civil, detém 45% do capital social e Stanley Ho cerca de de 25%.

A segunda explicação tem a ver com o memorando de entendimento mediado por Diogo Lacerda Machado e assinado entre o Governo de António Costa e a Atlantic Gateway — o consórcio liderado por David Neeleman que ganhou a privatização de 61% do capital social da TAP ainda no tempo do governo de Passos Coelho. Com a chegada do Governo socialista, Neelman viu-se obrigado a permitir que o Estado mantivesse 50% do capital social da empresa.

Mais concretamente, através da cláusula 14.ª do memorando:

“O Estado português autoriza desde já a entrada no capital social da Atlantic Gateway pela Hainan Airlines, Co. Ltd (doravante designada por HNA) em percentagem a acordar entre os acionistas da Atlantic Gateway e a HNA (…) O Estado português autoriza igualmente que a HNA possa vir a subscrever diretamente parte das obrigações (…), caso que os direitos que neste Memorando de Entendimento se referem à Azul, se referirão à HNA na proporção das Obrigações por si subscritas”.

Na prática, esta cláusula reconhece o direito à HNA para ser detentora de uma participação indireta no capital social da TAP através, precisamente, da Azul.

O memorando de entendimento deixa ainda claro que a Azul pode ficar, mediante o cumprimento de certas condições, a ter dois direitos claros:

  • 6% do capital social da TAP, SGPS (alínea c do número 4 da cláusula 3.ª)
  • 41% dos direitos económicos da TAP, SPGPS, caso a Azul invista 90 milhões de euros em obrigações da TAP convertíveis em ações.

A relação entre os interesses económicos do patrão de Diogo Lacerda Machado e a HNA será a questão que o PSD deve explorar até à náusea. A grande questão reside em saber se a entrada dos chineses já estava prevista no acordo que foi fechado entre o consórcio liderado por David Neeleman e o Governo de Passos Coelho.

A participação de Diogo Lacerda Machado no negócio da VEM/Varig

É um negócio de 2006 que está sob investigação do Ministério Público e da Polícia Judiciária, por suspeitas da prática dos crimes de gestão danosa e de corrupção, entre outros.

Não há a indicação de que Diogo Lacerda Machado seja considerado suspeito ou que esteja sob investigação. Certo é que o advogado teve uma participação efetiva no negócio enquanto administrador da Geocapital.

A história explica-se rapidamente. Fernando Pinto, presidente executivo da TAP desde 2000, queria comprar a sua anterior companhia de aviação: a Varig. Para atingir esse objetivo maior, Pinto fez com que a TAP comprasse duas subsidiárias da Varig: a VEM – Engenharia e Manutenção e a Varig Log (transportadora de carga). Esse desígnio concretizou-se com o financiamento da Geocapital, de Stanley Ho, que investiu cerca de 21 milhões de euros no negócio, entrando os brasileiros do Banco Nacional de Desenvolvimento Económico e Social com um crédito de 42 milhões de euros.

O problema é que a compra da Varig não se concretizou e a TAP foi obrigada a pagar os 21 milhões de euros à Geocapital, mais um prémio de 20% (cerca de 3,7 milhões de euros) sobre esse capital. Pior: desde 2006 que a VEM já acumulou prejuízos de mais de 500 milhões de euros para a TAP. Um negócio ruinoso.

Além da intervenção no negócio da compra, Lacerda Machado foi administrador da VEM entre fevereiro de 2006 e março de 2007.

Pelo meio, há despesas de mais de um milhão de euros a escritórios de advogados que estão por explicar.

Falta saber qual foi exatamente a intervenção de Diogo Lacerda Machado neste negócio, assim como é fundamental perceber se seria possível antecipar o negócio ruinoso em que a compra da VEM se transformou.

A TAP e Stanley Ho já tinham sido parceiros na Air Macau — a companhia aérea bandeira da antiga região administrativa portuguesa que entretanto ficou nas mãos da companhia aérea pública chinesa.

As acusações de António Galamba: Kamov e SIRESP

Vieram sob a forma de um artigo de opinião mas as acusações de António Galamba, dirigente do PS e ex-governador civil de Lisboa, são muito concretas e tiveram repercussão pública.

Além das acusações de falta de transparência na escolha de Lacerda Machado como consultor do Estado, Galamba deu ainda duas novidades:

  • Diogo Lacerda Machado foi advogado da Motorola, empresa que faz parte do consórcio que ganhou o concurso para a gestão das telecomunicações das forças de segurança: o SIRESP — Gestão de Redes Digitais de Segurança e Emergência.
  • E terá sido júri do concurso público internacional que levou à compra dos helicópteros russos Kamov para combate aos incêndios florestais.

Os dois negócios foram adjudicados por António Costa, enquanto ministro da Administração Interna do primeiro-ministro de José Sócrates.

No primeiro caso, cuja veracidade foi confirmada pelo Observador junto de fontes próximas do SIRESP, estamos perante uma reavaliação que António Costa decidiu fazer, nos primeiros tempos do Governo de José Sócrates em 2005, de uma adjudicação decidida pelo governo de Pedro Santana Lopes em período de gestão. Após diversos pedidos de pareceres, António Costa decidiu-se pela manutenção da adjudicação a um consórcio liderado pela Sociedade Lusa de Negócios (empresa que detinha o BPN) e pela Motorola.

Enquanto advogado da Motorola, Lacerda Machado terá participado em negociações com a empresa gestora da rede de telecomunicações já depois do contrato ter sido assinado, apurou o Observador.

Mais tarde, em 2009, o Governo de Sócrates decidiu adquirir 18 mil terminais para as comunicações das forças de segurança que usam o SIRESP. A Motorola voltou a ser uma das sociedades escolhidas, tendo vendido mil terminais por 2,5 milhões de euros.

Já no que diz respeito aos Kamov, trata-se de uma decisão política que foi tomada em 2006 em virtude de um apoio do Governo Sócrates às relações comerciais entre Portugal e a Rússia. Foi uma decisão sempre contestada pelos técnicos do combate aos incêndios por os Kamov não serem adequados às necessidades de Portugal e devido à pouca fiabilidade dos aparelhos russos. O tempo veio a dar razão a essas críticas: Dos seis helicópteros Kamov da frota do Estado, apenas três estão aptos para voar, estando dois inoperacionais e outro acidentado desde 2012.

Os alegados conflitos de interesse

Como pano de fundo de toda a audição de Diogo Lacerda Machado estará uma questão que rodeia todos os advogados e sociedades de advogados que trabalham para o Estado mas também representam interesses privados: os conflitos de interesse.

Os interesses privados de Diogo Lacerda Machado são claros: é administrador executivo de uma empresa de capitais chineses que tem interesses em diversas áreas e tem trabalhado em permanência em diversas sociedades de advogados.

Os interesses da Geocapital na TAP, por exemplo, têm uma intersecção com os interesses imobiliários da empresa de Stanley Ho. Enquanto a empresa promotora da sociedade gestora da Alta de Lisboa (área próxima do aeroporto da Portela), a Geocapital sempre teve interesse nos terrenos da infra-estrutura aeroportuária — particularmente quando o governo de José Sócrates decidiu construir um novo aeroporto internacional de Lisboa. Apesar de tal projeto ter ficado congelado, o mesmo acabará por ser inevitável face ao crescimento de passageiros e falta de espaço para a Portela se expandir. Apesar dos terrenos serem de domínio público e a privatização da ANA (a gestora dos aeroportos nacionais) ter previsto que os mesmos regressarão à posse do Estado, a TAP é sempre uma parte interessada na matéria.

O mesmo tipo de intersecções podem colocar-se nos dossiês de mediação que Diogo Lacerda Machado tem feito no caso BPI (entre o CaixaBank e a empresária angolana Isabel dos Santos) ou no caso dos lesados do BES (entre o Banco de Portugal, Comissão de Mercado de Valores Móveis e os clientes alegadamente prejudicados).

A Geocapital está presente no capital de diversos bancos africanos, sendo Lacerda Machado administrador do Moza Banco (Moçambique) e do Banco da África Ocidental (Guiné-Bissau). A empresa de Stanley Ho nunca escondeu que queria aprofundar as relações entre os sistemas financeiros português, brasileiro e africano.

“Um dia, que não será muito distante, esta plataforma, esta malha comum, há-de estar completa, e nesse dia esperamos que no Brasil haja alguma coisa, e também Macau necessariamente, o lugar de origem de tudo isto. E em Portugal, também, como é óbvio, há-de chegar a altura própria”, afirmou Lacerda Machado em 2013 à Lusa.