Reconstruir estradas, pontes, túneis, aeroportos, escolas e hospitais. E pôr milhões de pessoas a trabalhar nas obras. Quem ouvisse o discurso de vitória no final da longuíssima noite eleitoral americana pensaria que o vencedor tinha sido o presidente da Mota Engil. Ou o hoje reformado Cavaco Silva, que gostava de grab them by the concrete. Errado. O vencedor foi mesmo Donald Trump, contra todas as previsões, sondagens e macumbas feitas por esse mundo fora.

Para além do regozijo óbvio de Isabel Queiroz do Valle, Lúcia Piloto e Toni & Guy, o resultado de Trump deu uma alegria enorme a milhões de norte-americanos que estão fartos do famoso sistema e que já não suportam aquilo a que se convencionou chamar “os políticos”. Claro, pelo meio haverá umas pessoas (dez, ou doze, no máximo) que apreciam pouco imigrantes, muçulmanos, negros, homossexuais, hispânicos, asiáticos, socialistas, mulheres em geral e em particular, mas a verdade é que a vitória demonstra que a mensagem de Trump chegou mais além.

Neste processo, os politólogos norte-americanos, mas também os europeus, demonstraram que têm tanta competência na análise dos dados e tendências como os economistas, entre outros astrólogos. E agora o mundo terá de se haver com um homem que aprecia andaimes, muros e toucinho, que adora despachar mesquitas a preço de saldo e que não tem propriamente filtros, um homem que inclusive sobrevive a todos os apoios envenenados: do Ku Klux Klan a Vladmir Putin, não há embaraço ou más companhias que o derrubem.

Convenhamos, nos tempos da boa e velha América, um candidato que namoriscasse o líder russo, qualquer líder russo, de Estaline ao ursinho Misha, teria tantas hipóteses de vencer umas eleições como uma bota da tropa. Guess what, o mundo do calçado triunfou. Ora, enquanto o planeta não implode e Trump é mantido ao largo dos códigos nucleares, maná que só dura até Janeiro — nessa altura, o primeiro presidente negro passará o testemunho a um afilhado do KKK — vejamos quem são algumas das personalidades da cultura que podem ajudar a manter a sanidade na América. Isto se tiverem sobrevivido à noite eleitoral, situação que ainda está por verificar:

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Jon Stewart

É o homem que mais tem feito falta à televisão a seguir a Vasco Granja e ao Engenheiro Sousa Veloso. A decisão de reforma antecipada, na linha de muitos políticos “do sistema” — os tais de que o eleitorado de Trump não gosta — acabou por criar um vazio mediático. E como na política, os vazios são sempre ocupados por alguma coisa pior. Os bonecos de Donald Trump interpretados por Alec Baldwin, entre outras paródias, foram apenas uma espécie de ataque com uma faca romba de sobremesa. Resultado: ficamos a pensar que a contundência iluminada de Stewart fez falta. Bom, pode ser que volte à antena para enfrentar estes tempos de chumbo, a não ser que Nova Iorque encolha os ombros e proclame a independência. Coisas mais estranhas já aconteceram na América. Se tem dúvidas, volte a conferir os resultados da noite eleitoral.

George R. R. Martin

Da sua cabeça nasceram monstros de aspecto humano como Geoffrey, Sandor Clegane e Ramsay Bolton mas provavelmente nunca lhe passou pela cabeça um Donald Trump. Agora que a saga da “Guerra dos Tronos” se aproxima do desenlace, podemos sempre rogar a George R. R. Martin que não pare de escrever, prolongando por tempo indefinido uma história de ultraje, violência e luta cega pelo poder que ajuda o povo a alhear-se e que mais parece uma fábula de crianças, comparada com o que o futuro nos reserva com o Walder Frey cor-de-laranja aos comandos.

Toni Morrisson

É escritora, é negra, é mulher, é intelectual, é brilhante, é professora emérita da universidade de Princeton, uma das maravilhas da América liberal. Mesmo que nunca tenha pensado em ler o muito recomendável Beloved, lembre-se que tudo isso poderia irritar solenemente o novo presidente americano.

Beck

Se há coisa que aquela terra sempre soube dar-nos foi música. Para estes dias de ressaca, durante os quais será difícil enfrentar a dura realidade, propomos a revisitação da discografia do autor de “Loser” ou “Devil’s Haircut”, um tema desgraçadamente apropriado ao novo commander in chief dos Estados Alucinados da América. Por agora será necessário deixar a poeira (branca) assentar e para isso nada melhor do que mergulharmos em versos de pendor surrealista que nos transportem para uma realidade onde Trump não é presidente e onde Sarah Palin não aparece como uma das vencedoras da noite. Por exemplo, quando trauteamos:

Grinding the gears eighteen wheels
Pigs and robots riding on their heels

dificilmente pensamos em Donald e apaniguados. E daí…

Kevin Spacey

Habituámo-nos à sua presença magnética a partir do momento em que interpretou um homem obcecado com os pecados mortais. Não falamos de João César das Neves mas sim do vilão sem nome de “Seven”, filme de referência realizado por David Fincher. Desde aí ganhámos apetite pelas personagens mergulhadas em perversão que Spacey teve o bom gosto de encarnar, com especial relevo para Frank Underwood, o presidente-ceifeira debulhadora da série “House of Cards”. A quinta temporada já estará na calha e mergulhar nela será uma boa forma de escapar ao mundo gerido por Trump, Putin ou Marine Le Pen, que provavelmente será a senhora que se segue no comboio-fantasma da política mundial. Perante tal panorama, mais vale abraçarmos Spacey e uma galeria de personagens que, comparados com a vida real, não passam de uns meninos de coro.

Pedro Vieira é consultor da Booktailors, pivô de televisão e ilustrador relutante.