Gisela João tem álbum novo. Nua, assim lhe resolveu chamar.

E é desnudada que Gisela João se apresenta na capa, fotografada em casa por Estelle Valente. Estelle é amiga. Desde há muito. Sempre de lente focada sobre Gisela, nos concertos como em casa, em casa como na rua. Mas a nudez deste álbum, saído três anos depois do de estreia – homónimo, premiado e aclamado pela crítica –, é mais do que a da fotografia em si. Gisela chamou-lhe Nua porque está nele como é, por inteiro, genuína, a fazer o que mais gosta de fazer: cantar o fado.

E são fados que nele se ouvem, pois claro. Ou escolhidos pela própria – e quão “difícil” foi desapegar-se dos que nele não entraram –, celebrizados em vozes como a da Amália que Gisela sempre (e ainda) idolatrou; outros com letras inéditas (da rapper Capicua, por exemplo) cantados sobre fados tradicionais.

– É sempre a subir! – atira Gisela, do alto do terceiro andar.

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Recebe-nos na sua casa, em Lisboa, pela noitinha, rodeada dos músicos que a acompanham de um lado para o outro, estrada fora. Ensaiam para o concerto de apresentação de Nua, na discoteca Lux, em Lisboa. Um espaço que para Gisela tem aquilo que só as casas de fado, que só os lugares pequenos e com história têm: intimidade. “Cantar no Lux é a ‘nudez’ total”, explica.

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A conversa, depois do ensaio terminar e dos músicos saírem, faz-se no sofá de casa — no mesmíssimo local onde foi fotografada para a capa, à sombra da janela –, às voltas com um cigarro e à volta de história mil. Gisela é uma contadora de histórias por excelência. Sem filtros. Como no fado que canta, afinal.

Tens vizinhos nos pisos de cima e de baixo, não tens?
Tenho, tenho.

E o que é que eles te dizem dos ensaios cá em casa?
Eles adoram. [Risos] Vou-te contar um história. Foi ontem ou anteontem. Veio aqui a casa uma amiga minha, sentou-se a ouvir-me e disse assim: “Ai, Gisela, que inveja que eu tenho dos teus vizinhos! Eles podem-te ouvir-te a cantar e eu não posso…”

Por falar em ensaiar e cantar num espaço que não é o mais habitual: tu não gravaste este álbum em estúdio. Foi gravado no Palácio de Santa Catarina, na Bica, e na Cidadela, em Cascais. Porquê? Sentes-te melhor lá do que em estúdio?
Sim, sinto. Ou melhor: quando o meu primeiro álbum saiu, tive muito, muito trabalho. E não tinha tempo livre que me permitisse parar uns meses e gravar num estúdio. Mas não foi só por isso. Esse primeiro álbum também não foi gravado em estúdio. Sabes, eu gosto de espaços assim [aponta em volta], com história. Não me vejo a viver num apartamento novo. Eu gosto de casas que me inspirem. E quando canto, gosto de me ouvir. Gosto dessa acústica que o estúdio não tem. Daí a escolha de gravar num sítio, depois outro.

A propósito do disco Nua. A foto de capa é da tua amiga Estelle Valente, certo?
[Acena afirmativamente com a cabeça] Foi tirada aqui onde estás sentado comigo, onde está este sofá. Esta sombra [aponta para a capa do álbum] vem da minha varanda!

Mas o disco não se chama Nua só por estares sem roupa na fotografia.
Pois não. Como o meu primeiro álbum correu tão bem, toda a gente tinha uma expectativa muito grande em relação à Gisela João e ao álbum seguinte. E todos me perguntavam muito: “Então, o álbum novo?” Ouvia isto milhões e milhões de vezes. E diziam-me: “Olha que tem que ser melhor do que o primeiro! E tens que ter só fados originais…” Enfim, ouvia de tudo. E isso assustava-me, sabes? Até que houve um dia em que percebi que não tinha que me deixar levar pelo medo – o medo é o pior inimigo que nós temos. O que eu tinha é que me concertar naquilo que me fez – e que continua a fazer – gostar de cantar o fado. E isso são os poemas, é a simplicidade do fado, é o cantar só por cantar. É isso que eu gosto mais de fazer: cantar. Mas também acho que essa expectativa toda à minha volta foi construída por mim. Fui eu quem fez essa “sombra” a mim própria. Depois, foi preciso parar. E pensar: “Não, espera lá! O que é que eu gosto de cantar? Porquê e o quê?” Lá está: são coisas simples que gosto de cantar. O que ouves neste álbum é o que eu sou. Então, resolvi chamar-lhe Nua.

Mas acredito que a escolha dos fados que gravaste foi difícil. A lista daqueles que querias gravar – e não podias – é interminável, não?
Adivinhaste. Tenho sempre um lista interminável!

Então como é que conseguiste reduzir isto a somente treze? Foi com a ajuda do Frederico Pereira, o produtor?
Sim, também foi com a ajuda dele. Para mim é sempre difícil essa parte. Eu tenho um problema com o desapego, confesso. E então, o que é que nós fizemos? Eu faço assim uma lista grande de fados, apresento-a ao produtor, e depois vamos tirando alguns por exclusão de partes…

Mas espera lá: “grande”, quanto?
Hmmm… talvez uns sessenta fados.

Mas falavas-me da “ exclusão de partes”…
É muito difícil fazer isso. É uma choradeira pegada! [Risos] Primeiro, olhamos para o poema. “Este quer dizer o mesmo que este. Ou a melodia é muito semelhante. Então, qual dos dois é que me dá mais gozo, qual é que me motiva mais? É este. Pronto.” Tem que ser por exclusão de partes. E foi assim que se chegou a estes.

Pergunto-te: satisfeita?
Fiquei. Super!

Tens aqui muitos fados que foram cantados pela Amália, por exemplo. Nunca escondeste que ela foi a tua maior influência. Ouvia-la na rádio, ainda menina, lá em Barcelos. Depois tentavas cantar como ela cantava. Ainda é essa influência para ti?
Sim. A Amália é. E o Camané também. Mas foi a Amália que me fez apaixonar pelo fado. E há muitos poemas que ela canta e me dizem muito. Por isso é que eu achei, quando a ouvi cantar pela primeira vez, que ela estava a fazê-lo para mim. O fado tem uma coisa de que gosto muito. Por exemplo: numa casa de fados, à noite, tu podes ter vários fadistas a cantar o mesmo fado — às vezes fados com a mesma letra e tudo. Mas é sempre diferente ouvir um ou ouvir o outro. Não se explica. A forma como o cantas tem a ver com a tua vivência, a carga emocional que tu pões naquele poema ao cantar, tem a ver com o que aquela poema te diz. Todos nós temos vivências diferentes uns dos outros. É por isso que quando canto reportório da Amália – ou da Beatriz da Conceição, ou da Argentina Santos –, canto à minha maneira, com a vida que vivi.

Mas não te é difícil, sobretudo quando o fado – e a letra – está muito associado a alguém, fazer a reinterpretação? “Descolar”?
Eu percebo a tua pergunta. Sinceramente: não me é muito difícil. Quando escolho uma música para o álbum, não a escolho porque a ouvi naquele dia a disse para mim: “Olha, é esta!” Não. Escolho-a porque a ouvi muito, porque li muito aquele poema, porque cantei muito aquele poema. Porque me reconheço no poema. Entendes? Quando canto, e à medida que vou dizendo as palavras, as frases, vêm-me à memória imagens, momentos da minha vida que aquele poema me faz recordar. Por isso, não me é muito difícil. Mas o Camané, por exemplo, tem fados que eu não cantaria de forma diferente da dele. E é por isso que não os canto. Se cantasse, cantaria exatamente assim. Não te sei explicar porquê.

Mas também tens fados originais no álbum. Voltaste a colaborar – tal como no primeiro — com a Capicua, que é tua amiga.
Esse é um fado [“Noite de São João”] tradicional – chama-se Fado Triplicado. Eu canto esse fado há muitos anos. Mas canto-o com uma letra diferente, que é da Berta Cardoso e onde se fala de uma noite de São João em Lisboa. Eu e a Capicua estávamos sempre a dizer: “Epá, temos que fazer uma letra sobre o São João no Porto!” E quando escolhi esse fado para entrar no álbum, disse-lhe logo: “Vá, faz lá a tal letra…” Foi assim.

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A fadista Gisela João, em casa e rodeada pelos seus músicos, durante o ensaio do novíssimo álbum Nua (Créditos: Fábio Pinto/Observador)

Quando deixaste o Porto e vieste viver para Lisboa – ainda antes de gravares o primeiro álbum –, cantavas em casas de fado. Ou melhor: no “Sr. Vinho”, da Maria da Fé e do José Luís Gordo. Ainda voltas lá de vez em quando?
Eu queria. E até me faz falta. Só que não tenho tempo. Mas eu gosto muito de casas de fado. E aprende-se muito lá. Até a lidar com o público. No palco tu estás mais protegido do que numa casa de fado, onde as pessoas estão ali, à tua frente. Vou-te contar uma história que me aconteceu. Começava a cantar, fechava os olhos, toda emotiva, voltava a abrir os olhos e tinha alguém a dar uma garfada à minha frente. Ou a bocejar! [Risos] E há outra coisa muito fixe nas casas de fado: tu chegas lá, dizes que ouviste o fado tal, o guitarrista saca o tom e experimentas logo ali o fado, com público. É diferente de estar a ensaiar em casa, com os músicos, num ambiente onde estás mais resguardado.

Esta quinta-feira há concerto de apresentação do Nua. O Lux – onde em tempos te ouvi atuar com Linda Martini ou o Nicolas Jaar — é um bocadinho como uma casa de fado? Por ser intimista…
Talvez, sim. Faz sentido. Eu tenho um carinho muito grande pelo Lux. E pelas pessoas do Lux. Esse é o outro lado da Gisela. E como o álbum se chama Nua, cantar no Lux é a “nudez” total. Nunca escondi que – desde miúda – ouço música eletrónica: techno, minimal, transe. O Lux é esse outro lado em mim. Estou ali toda, por inteiro, mais intima.

Mudou alguma coisa em ti desde o primeiro álbum até este?
Não. Ou melhor: sim. Estou mais velha. E doem-me mais as costas! [Risos] O que eu acho é que estou mais calma do que no começo. A cada dia que passa, a cada ano que vai passando, vamo-nos tornando pessoas diferentes. Hoje deito-me e amanhã, quando me levantar, sou uma pessoa diferente. Foi isso que mudou.

Mas estes três anos passaram muito depressa. Não sentiste isso?
Senti. Passou tão rápido! No outro tinha um comentário de um senhor no meu Facebook: “Onde é que está o disco novo? Tenho este disco a rodar há cinco anos! Isto não se admite…” Nem respondi. Mas pensei: “Ó senhor, o disco saiu há três anos, não foi há cinco…” Mas como o tempo passa tão depressa, é normal que ele tenha pensado que foi há mais. Sabes, há uma coisa que me incomoda…

Então?
Hoje em dia vivemos na Era da Internet. E isso veio mudar tudo. Hoje queremos viver tudo muito depressa. Não sei se é de hoje. Sempre foi da natureza humana estar-se eternamente insatisfeito. Querer o que não se tem. Mas hoje em dia isso até piorou. Não é fixe. E é por causa disso que adoro música. A música faz-nos parar. E usufruir. Nunca gostei da ideia de ter que fazer um disco à pressa. Não, não tem que sair de dois em dois anos. Não, as canções não têm que ter não-sei-quantos minutos para poderem passar na rádio. A arte está para além disso tudo. O que eu quero é que a música me cative, me inspire. E inspire os outros.

Estás a falar disso, do tempo, e lembrei-me que este álbum também foi editado em vinil. É uma maneira diferente de escutar música…
Gosto muito de vinil. Tenho ali a minha caixinha em cima! [Aponta para o gira-discos no topo de uma prateleira] No outro dia tive cá um dos meus irmãos em casa e tive que “chatear-me”. Eles passam a vida com os phones nos ouvidos. A qualidade não é fixe! E disse-lhe: “Ora experimenta lá os meus HD 25 [um modelo de auscultadores topo de gama da Sennheiser] e diz-me o que achas…” E respondeu-me: “Ah, pois é, isto é tão diferente!” É o mesmo que quereres ver um filme com uma fotografia do caraças, a cores, numa televisão má e a preto e branco. Não resulta.

Mas falando do vinil…
Pois, o vinil. Com o vinil tu tens aquele lado que é quase terapêutico. Para mim é terapêutico. É como fazer chá. É um ritual. Acendo só os candeeiros, vou ali buscar a minha caixinha [gira-discos], ponho-a aqui em cima da mesa, tiro o vinil, olho para ele, ponho-o a girar, puxo a agulha, coloco-a lá, ouço até ao fim. Depois, sento-me. [Gisela recosta-se no sofá] Encontro aqui um posição confortável. “Ya! É isto. ‘Tá lá.” E isto é algo que se foi perdendo. A qualidade de som no vinil é algo completamente diferente. Até aquele barulhinho da agulha nos relaxa. Faz-nos estar mais atentos, escutar melhor a música, pensar na vida. A música, a mim, faz-me parar no tempo. Estou no limbo: ora acordada, ora a dormir, ora na música, ora fora dela.

E precisas disso, não? Passas muitos dias a viajar, a dar concertos…
Foda-se! [Di-lo com um sotaque nortenho, sorridente, genuíno, e volta a recostar-se no sofá] Oh se preciso. Esta vida de estrada é tramada.

Gisela João apresenta o álbum Nua esta quinta-feira à noite (23h00) na discoteca Lux, em Lisboa