A rotatividade é uma palavra muito em voga no futebol de hoje. A gestão é outra. Outros tempos. Há 40 anos, não há cá descanso nem poupanças entre os titulares. Um jogo é um jogo, fosse com o Benfica ou com o Mindelense. O Sporting que o diga. Nos oitavos da Taça de Portugal 1970-71, escreve-se história com o 21-0 aos campeões ultramarinos (das colónias portuguesas em África: Angola, Moçambique, São Tomé e Príncipe, Cabo Verde mais Guiné-Bissau). É a maior goleada de sempre na Taça e acontece a 23 maio 1971.

Em Alvalade, sob arbitragem do setubalense Carlos Monteiro, o treinador Fernando Vaz alinha o melhor onze com Damas; Laranjeira, Caló, José Carlos e Manaca; Tomé e Pedras; Chico, Lourenço, Peres e Dinis. Pela frente, 11 rapazes do Mindelense que nunca haviam saído do Mindelo. Se fosse só isso. Tomé, autor de dois golos, lembra-se da generosidade dos cabo-verdianos. “Estavam verdadeiramente fascinados por estar no mesmo relvado que algumas figuras. Tratavam os internacionais por senhor. Era senhor Damas para aqui, senhor José Carlos para ali, senhor Peres para acolá. E, para cúmulo, nunca tinham jogado futebol num relvado, só em pelados. Imagina o desconforto, não é? Nem nunca tinham jogado com tanta gente no estádio.” E estamos a falar de 35 mil ou 40 mil espectadores, a casa em Alvalade.

A memória de Tomé vai mais além. “Ao intervalo, havia 13-0. Saiu um guarda-redes deles [Funa] e entrou outro [Armando], que sofreu mais oito, embora tenha feito uma grande exibição. Olhe, ainda evitou uns quantos. E a verdade é que também ficou ‘só’ 21 a zero porque o Peres e o Lourenço entretiveram-se a rematar à baliza a torto e a direito para conseguirem o maior número de golos possível. Eles queriam bater recordes pessoais e até do clube mas não sei quem marcou mais.”

E o vencedor deste peculiar concurso é? Lourenço marca o primeiro da tarde. Segue-se o bis. O hat-trick. O póquer. O penta. Ao intervalo, Lourenço tem cinco golos. Peres, por exemplo, só tem dois. Na segunda parte, o esquerdino faz cinco e fixa-se nos sete, enquanto Lourenço só festeja mais uma vez, precisamente o 21-0, a dois minutos do fim. O lateral Pedro Gomes entra ao intervalo e não marca nenhum golo. “Desses 21-0, lembro-me com agrado do convívio pós-jogo com os cabo-verdianos. Eles só queriam as nossas camisolas e tenho a ideia de estarem sempre a sorrir. Até no jogo: sofriam um golo e sorriam.” Ingenuidade misturada com generosidade. Lá está, outros tempos.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

mindelense

Mindelense, uma equipa de Cabo Verde visita Alvalade. Antes, uma de Moçambique em 1962-63 (Sporting de Lourenço Marques, 3-1 e 4-2) e outra de Guiné-Bissau em 1968-69 (União Bissau, 5-1 e 12-0). Então, e uma dos Açores? Até hoje, nenhuma. A partir de hoje, uma. É isso mesmo, o Praiense de Angra do Heroísmo visita o Sporting esta quinta-feira. Líder indiscutível da série F do Campeonato Nacional de Seniores, com oito vitórias e dois empates, a equipa de Agatão mantém o registo invencível na Taça de Portugal (Ideal 2-0, Coimbrões 5-2 e Farense 3-1) e está animada com a aventura. A última derrota pertence à época anterior, ainda na era Lima, com o 1.º Dezembro.

Muito bem, nada de Sporting vs Açores. E os outros grandes? Tanto Benfica como Porto recebem a ilustre visita de açorianos, todos de Angra de Heroísmo. O primeiro de todos é o Angrense, na Luz, a 12 Junho 1960. Acaba 10-0, com hat-tricks de José Augusto e José Águas, bis de Coluna e contribuições solitárias de Cavém mais Santana. É um momento histórico, o primeiro jogo de sempre de uma equipa açoriana na Taça de Portugal. Quem é o treinador do Benfica? Bela Guttmann. Precisamente o treinador do Porto num 8-0 ao Lusitânia, nas Antas, em Abril 1974. Há três bis (Ricardo, Abel e Cubillas). O 4-0 é de Flávio e é Oliveira quem fixa o marcador, de penálti, aos 78 minutos. Cinco anos (e uma revolução) depois, o Porto volta a derrubar o Lusitânia, nas Antas. A eliminatória é resolvida bem cedo por Gomes, autor de um bis aos 19′ e 27′.

É tudo? Ainda não, só mais um pormenor engraçado. Na edição da Taça de Portugal 1966-67, o Benfica calha em sorte com o Angrense para a 3.ª eliminatória. No dia previsto para o tal jogo da Taça, o campeão açoriano diz-se desistente e é ver o Benfica a jogar na Venezuela (2-2 com o Universidad, bis de José Augusto) numa digressão pela América do Sul. A história é contada pelo Angrense, através da revista oficial do clube. “Devido a compromissos internacionais, o Benfica não estava em condições de apresentar a melhor equipa na data em que deveria ser disputada a eliminatória. Em vez de ir a jogo, o Angrense aceitou a realização de um particular, em Angra, no final da época, com todo o plantel.” Em Junho, no dia 21, uma quarta-feira, o Benfica viaja até aos Açores e ganha 6-1 com golos de Eusébio, Nélson, Calado, José Augusto, Nélson e José Augusto. Pelo meio, Laureano faz o ponto de honra dos angrenses. É a festa completa. Outros tempos.

Esta quinta-feira, às 20h15, o Sporting entra em definitivo para a história do futebol açoriano. Cortesia Praiense, o terceiro clube da ilha da Terceira na casa de um grande.