Já houve um “orçamento Limiano” e outro chamado “do Altis”, combinados ou negociados entre o PS de António Guterres e CDS. Já houve orçamentos mais “troiquistas” que a troika, de Passos Coelho e Paulo Portas, ou o célebre orçamento da “tanga”, de Durão Barroso com Manuela Ferreira Leite. Este, que faz as nossas contas para 2017, começou como o orçamento Mortágua — por causa do imposto sobre o grande património imobiliário que a deputada anunciou — e acabou como o orçamento da Caixa Geral de Depósitos, que a direita denunciou.

O Orçamento do Estado (OE) para 2017 tornou-se no orçamento da esquerda que dois terços da esquerda partidária diz não ser bem de esquerda, mas que repete o voto antes improvável dos partidos de esquerda num OE que agrada aos “neoliberais” de Bruxelas. Seria, para o PCP e o BE, o Orçamento daquilo que se arranjou, mas nunca os partidos à esquerda do PS tinham conseguido que tanto se arranjasse, nem no projeto inicial, nem depois na especialidade. Para o PS, é o OE da quadratura do círculo: devolver rendimentos, cumprir o défice, ter a aprovação de Bruxelas e garantir mais um ano de Governo. Para a direita é o desastre eleitoralista anunciado a um ano de eleições autárquicas.

Poderia ser, também, o OE do silêncio, em que o primeiro-ministro não respondeu a qualquer pergunta dos partidos. No último dia de debate, a voz do Governo fez-se ouvir através de um discurso longo e soporífero da ministra da Presidência, Maria Manuel Leitão Marques, que destacou medidas, conquistas e metas, assumiu o conceito da vaca voadora que o primeiro-ministro que ofereceu há uns meses:

É difícil conjugar o cumprimento de objetivos exigentes em matéria de défice com a reposição de rendimentos devidos”, afirmou a ministra.

Também poderia ser o OE do otimismo de António Costa, que a ministra da Presidência evocou, citando o comissário Europeu dos Assuntos Económicos, Pierre Moscovici: “É preciso ter a humildade para reconhecer que o otimismo do Governo português sobre o orçamento do Estado para 2016 se confirmou”.

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Ou, como disse Carlos César, líder parlamentar do PS, este é o orçamento da “confiança”. Porque a improvável solução política das esquerdas se tornou parte do sistema. “Muitos portugueses que desconfiavam de soluções à esquerda estão hoje tranquilo e confiantes”, disse César, e destacou que “o otimismo do Governo se confirmou e a economia está no bom caminho”.

O debate desta terça-feira não foi bem um debate, mas um conjunto de intervenções de fundo, que encerraram a maratona de mês e meio de debates na Assembleia da República sobre o orçamento na generalidade e na especialidade.

Não sendo um orçamento “mesmo” de esquerda (segundo os próprios líderes da esquerda), foi pelo menos o OE da competição esquerdista pelas conquistas orçamentais da esquerda. Primeiro o PCP e depois o BE fizeram esta terça-feira questão de enumerar tudo aquilo que tinham levado o PS a aceitar, ou seja, aquilo que foi possível arranjar. O balanço, para PCP e BE, é positivo.

João Oliveira, do PCP, elencou “as marcas decisivas do PCP” — enquanto uma assessora do partido distribuía um longo documento com os contributos do PCP para o OE –, acusando a direita de suscitar o debate sobre a CGD para desviar as atenções do Orçamento. O líder parlamentar comunista destacou, sobretudo, as pensões:

Não desistimos de lutar para que o aumento de pensões não considerasse apenas o valor das pensões mais baixas e tivesse em conta a valorização das carreiras contributivas, considerando que quem descontou uma vida inteira também tem direito a ter a sua pensão aumentada”, afirmou João Oliveira.

O comunista não puxou dos galões apenas no aumento dos 10 euros para as pensões contributivas mas também destacou outra “marca decisiva”: a do aumento de seis euros para as pensões mínimas.

Se o PCP reclamou a influência na devolução de rendimentos, o Bloco de Esquerda fez o mesmo e Pedro Filipe Soares, líder parlamentar do BE, disse que “a versão final do OE é melhor do que a proposta que o Governo apresentou na Assembleia da República há pouco mais de um mês”. Destacou os aumentos nas pensões (os de 10 euros e os de seis euros), mas também sublinhou que a sobretaxa acaba a 1 de janeiro para 90% dos contribuintes, o que não acontecia na primeira versão da proposta orçamental.

Pedro Filipe Soares elogiou o alargamento do abono de família, o “combate à precariedade que começa no Estado” e a “defesa dos trabalhadores independentes”. Mas criticou (também o PCP), por não ter conseguido convencer outras forças, em aspectos como o “fim da isenção do IMI do partidos”. Ou deixou esta crítica ao PS (e também ao PCP) por causa da “desresponsabilização” financeira dos autarcas.

Visto da direita, tudo ao contrário. Pior que de esquerda o orçamento é mau, populista, eleitoralista e enganador. Para o PSD, este é o OE do “populismo” que representa sempre “uma pesada fatura” no futuro. A intervenção do PSD ficou a cargo de José Matos Correia, que procurou desmontar número a número as previsões iniciais dos “12 magníficos” economistas do PS antes do partido regressar ao Governo. Confrontou esses dados com as previsões do OE para 2016, e comparou-os com a realidade. Para o social-democrata, “toda a retórica” do Governo “é consistentemente falsa” sobre os resultados da anterior governação:

Para esta esquerda, a verdade é um detalhe sem importância, um detalhe que pode ser manipulado. Uma vez mais, PS e parceiros esqueceram que a realidade, mais tarde ou mais cedo leva a melhor”, apontou o deputado do PSD.

Matos Correia até citaria “Alice no País das Maravilhas” e a conversa da menina com o Gato de Cheshire, sobre os caminhos de António Costa, mas havia subir o tom para falar da Caixa Geral de Depósitos. Pela primeira vez, o PSD pedia por outras palavras a demissão de membros do governo por causa da crise de liderança no banco público: “O processo da demissão da CGD ficará nos anais como incompetência e desrespeito pelo Estado de Direito”, afirmou o deputado que também preside à Comissão de Inquérito à Caixa. E acresentou:

Alguém tem de assumir a responsabilidade e tirar as conseqências políticas, porque desta vez é demasias grande para a culpa morrer solteira”, proclamou José Matos Correia.

O CDS tentava o truque de judo mais usado em política, que é acusar os adversários com os argumentos que eles próprios utilizam. Cecília Meireles classificou este como “o orçamento da austeridade dissimulada”, que mantém os impostos e aumenta outros, criando uma “barafunda no Estado” para confundir as pessoas. A deputada democrata-cristã acusou o Governo e a maioria parlamentar de “unir clientelas e satisfazer sindicatos, prejudicando o bem comum”.

E lá veio a alusão ao “novo imposto conhecido pelo imposto Mortágua”, lamentando (como o Bloco e Esquerda também lamentou) que se mantivesse a isenção de IMI para os partidos que também são grandes proprietários (como o PCP). Comparou este exercício orçamental ao de 2009, em que José Sócrates aumentou os funcionários públicos em vésperas de eleições legislativas “para logo depois os cortar”. E concluiu:

Esta é a fatura de sobrevivência do Governo socialista que os portugueses vão ter de pagar”.

O debate antes do debate

O debate principal ainda não tinha começado e já começara a discussão sobre o principal tema dos últimos dias. Antes de os ministros se sentarem na bancada do Governo e arrancar a discussão final, ainda se discutia um tema que tinha ficado do dia anterior: a recapitalização da Caixa Geral de Depósitos — cujos 2,7 mil milhões de euros tinham sido aprovados na segunda-feira – e o tom era duro. João Paulo Correia, do PS, acusava a direita de querer “privatizar” a CGD, por ter votado contra o valor inscrito no OE. João Almeida, do CDS a respondia que não, que o partido sempre defendeu uma CGD pública, “não por razões ideológicas, mas económicas”, por ser uma economia aberta assente em pequenas e micro empresas.

António Leitão Amaro, do PSD, alegava que o partido votou contra, não porque fosse contra a recapitalização, mas “porque o Governo recusa esclarecer aos portugueses” as razões daquele montante. E atacava: “Um Parlamento sério não passa cheques em branco e não anda de olhos vendados”, afirmou para acusar os partidos da esquerda de andarem “de olhos vendados e bico calado”. Acusou o primeiro-ministro de querer vergar-se perante Ricardo Salgado, porque há dias António Costa disse que foi o PSD que destruiu o BES”. E criticou de forma violenta a gestão do dossiê da Caixa:

Foi um desastre. A administração chumbada pelo BCE, e agora chumbada pela vossa falta de lealdade e seriedade. Fazem leis à medida e depois não se explicam aos portugueses”.

A “geringonça” não é uma orquestra, mas reagiu afinada. Miguel Tiago, do PCP, lembrou que o PSD “deu ao Banif 1.700 milhões de euros sem explicar aos portugueses” e recordou que o deputado Leitão Amaro “não parou para fazer peguntas” nessa época. Assim como no caso Espírito Santo: “Ninguém se lembra da sua indignação pelos 4,9 mil milhões para salvar o BES. O que importa é que a CGD seja um banco sólido”. Se Mariana Mortágua, do Bloco, atacou a direita ao dizer que “é a favor da recapitalização desde que não haja recapitalização”, o secretário de Estado dos Assuntos Parlamentares Pedro Nuno Santos reforçou o ataque: “Se o Governo anterior tivesse recapitalizado bem a Caixa, não seria necessário recapitalizar a Caixa.” O OE acabou como o orçamento da Caixa.