Foi uma das bandeiras eleitorais da Aliança Democrática mas para a oposição está a traduzir-se num “embuste” ou num “retoque fiscal”. O “alívio” em sede de IRS prometido pela AD vai reduzir o imposto em cerca de 200 milhões de euros face ao que está atualmente em vigor. O Governo recusa que tenha sugerido uma redução bem superior, mas a oposição acusa-o de ter propositadamente fugido à verdade quando durante a campanha (e até aqui) se referiu aos 1.500 milhões de “alívio fiscal”. Esse valor compara com o que estava em vigor em 2023 e ignora as alterações introduzidas pelo governo de António Costa para este ano, mas foi e tem sido várias vezes mencionado pela AD.

O Governo já publicou um comunicado a rejeitar que tenha mentido ou tido a intenção de dar a entender que a redução fiscal seria muito maior do que aquilo que será, remetendo para o discurso de Luís Montenegro no debate sobre o programa do Governo, em que o primeiro-ministro refere que os 1.500 milhões são a diferença “face ao ano passado”.

“A medida anunciada pelo primeiro-ministro é a de sempre e consistentemente a mesma. Nenhum membro do Governo ou dos partidos da coligação que o apoio alguma vez sugeriu, indicou ou admitiu outras reduções de taxas, designadamente que tivessem a mesma dimensão, mas a acrescer ao constante na Lei do Orçamento do Estado para 2024″, lê-se. E atribui o “erro sério” a “alguns atores políticos ou mediáticos”, “ficcionando outras reduções de taxas de magnitude muito diferente ou superior (e que seriam orçamentalmente irresponsáveis)”.

Ambiguidade ou não, certo é que o tema está a criar polémica, com o ministro adjunto e da Coesão Territorial, Manuel Castro Almeida, a admitir na SIC Notícias que, se está a existir discussão, é porque o tema não estava claro. Aliás, admite que há um “pequeno equívoco“, um “equívoco de comunicação” e “pode ter havido alguma ambiguidade“. É uma posição algo diferente da assumida pelo Governo, no comunicado, onde diz que sempre anunciou a medida como ela é.

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O Governo em modo sprint e a pressão máxima sobre o PS. O discurso de Luís Montenegro nas entrelinhas

Na intervenção inicial na discussão do programa do Governo, Luís Montenegro foi pronto a prometer:

Em primeiro lugar, aprovaremos na próxima semana uma proposta de lei que altera o artigo 68.º do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares, introduzindo uma descida das taxas de IRS sobre os rendimentos até ao oitavo escalão, que vai perfazer uma diminuição global de cerca de 1.500 milhões de euros nos impostos do trabalho dos portugueses face ao ano passado, especialmente sentida na classe média”.

Governo ignorou perguntas sobre custo reduzido da medida

Durante o debate sobre o programa do Governo, a Iniciativa Liberal pediu ao ministro das Finanças para clarificar se a descida de 1.500 milhões de euros no IRS incluía a redução de 1.327 milhões de euros que o governo de António Costa já tinha feito aprovar para o Orçamento deste ano. Este valor, segundo o Orçamento do Estado para 2024, inclui a redução das taxas marginais bem como a atualização dos escalões à taxa de inflação prevista para 2024 de 3%.

“Estou a ver mal ou esta grande descida de IRS que o Governo vai fazer são apenas 173 milhões de euros a menos do que o PS vai fazer?“, questionou o deputado Bernardo Blanco. Joaquim Miranda Sarmento não respondeu.

Já antes no debate, o líder da IL, Rui Rocha, tinha dito que, pelas suas contas, alguém que ganhe 1.500 euros por mês terá uma redução que não ultrapassaria os 10 euros por mês.

Montenegro anuncia que descida do IRS até 8.º escalão será aprovada já na próxima semana

Na altura, Montenegro acenou com a cabeça que não, dando a entender que será mais do que isso. Na resposta, disse que o exemplo que o líder da IL deu “não é realista” e indicou que, conforme os escalões, o resultado será “muito acima” em termos de poupança fiscal. Montenegro não especificou se a comparação que fazia era face a 2023 (antes da aprovação do Orçamento do Estado de Costa) ou face ao que o Executivo anterior já tinha aprovado, deixando a dúvida colocada por esclarecer.

O esclarecimento só veio esta sexta-feira, pela voz de Joaquim Miranda Sarmento, em entrevista à RTP, depois de ter sido questionado sobre se o “choque fiscal” significaria uma redução no IRS de 200 milhões de euros, na prática, face ao aprovado pelo governo anterior.

Miranda Sarmento: redução do IRS que Governo vai aprovar ronda apenas os 200 milhões de euros

A argumentação do Governo é que o compromisso que vem do seu programa “vai para lá” do que os socialistas tinham aprovado. O valor ainda não está totalmente fechado, mas “será mais do que 200 milhões”, disse o ministro das Finanças à RTP. “Ainda estamos a elaborá-la, a calibrar. Só na sexta-feira iremos apresentar em conselho de ministros”.

O ministro das Finanças frisou que “face a 2023” há “um desagravamento fiscal significativo” e diz que em relação à proposta do governo de Costa, a da AD baixa “ainda mais” o IRS para “todos os escalões de rendimento” com exceção do último (sendo que “mesmo o último também é beneficiado porque o IRS é progressivo”). Ou seja, “abrange muito mais contribuintes e famílias do que a proposta do anterior governo”, com um foco na classe média, segundo diz. O PSD votou a favor da proposta do PS dos novos escalões no âmbito do OE para 2024 (PCP e IL abstiveram-se), ainda que tenha votado contra o orçamento na globalidade.

A oposição acusa a AD de não ter sido clara quando, nas intervenções públicas, os seus líderes acenavam com um alívio de 1.500 milhões e que esse valor incluía, afinal, os 1.300 milhões já aprovados pelo governo de António Costa.

Pedro Nuno Santos usou as expressões “embuste e fraude“, Mariana Mortágua, coordenadora do BE, também falou em “embuste”, enquanto Rui Rocha diz que se trata de um “retoque fiscal” que “marca o fim do estado de graça deste governo” e entende que houve uma “tentativa de passar uma imagem que não corresponde à realidade“.

O PS anunciou que vai pedir um debate de urgência no Parlamento. “O Governo não pode enganar todos, todos, todos”, atirou a líder parlamentar socialista, Alexandra Leitão, numa referência à expressão que tem sido usada pela AD. “O Governo diz que todo o país percebeu mal. Não pode ter sido todo o país a perceber mal seguramente. É mais uma vitimização e má fé da parte deste Governo”, disse a deputada.

Também o Chega já anunciou que iria chamar o ministro das Finanças, Miranda Sarmento, e a secretária de Estado dos Assuntos Fiscais, Cláudia Reis Duarte, à comissão parlamentar de Orçamento e Finanças. André Ventura admite mesmo chamar à votação o Programa de Estabilidade que o Governo vai entregar na próxima semana no Parlamento e assume que a proposta do IRS do Governo “provavelmente” terá o voto negativo do Chega. “Parece que é o Governo que quer provocar a crise ele próprio”, acrescentou.

PS pede debate de urgência com ministro das Finanças. Chega chama Miranda Sarmento à comissão parlamentar

O que se sabe sobre o “alívio fiscal” no IRS

A redução do IRS feita pelo anterior governo abrangeu as taxas dos cinco primeiros escalões — a proposta deste governo vai até ao oitavo. O programa eleitoral da AD prevê a “redução das taxas marginais de IRS até ao 8.º escalão entre 0,5 e 3 pp (pontos percentuais) face a 2023“. Nesse mesmo programa indicava um impacto nas receitas de 2 mil milhões de euros entre 2024 e 2026 com a isenção de contribuições e IRS sobre prémios de desempenho e redução das taxas marginais. Já o IRS Jovem estava contabilizado num impacto de 1.000 milhões em 2025. A frase em relação ao IRS foi transposta para o programa do Governo onde se indica a promessa de “redução do IRS para os contribuintes até ao 8º escalão, através da redução de taxas marginais entre 0,5 e 3 pontos percentuais face a 2023, com enfoque na classe média”. Ambos os documentos foram produzidos com o orçamento já em vigor.

O Executivo ainda não indicou quanto é que esta redução vai significar, na prática, a cada contribuinte, nem a dimensão de redução por escalão.

Joaquim Miranda Sarmento já disse que a redução não estará muito distante do proposto pelo PSD para o Orçamento do Estado deste ano, ainda antes da queda do governo. Mas como o PS fez alterações, que em alguns casos são mais baixas do que propunha o PSD na altura, não é possível assumir que a proposta de então dos social-democratas se efetive agora. O Ministério das Finanças, questionado pelo Observador, não respondeu.

A proposta do PSD acabou por ficar desatualizada em alguns escalões com as alterações aprovadas, especialmente porque há hoje taxas marginais mais baixas do que as propostas pelos social-democratas:

1º escalão, até 7.703 euros: PSD propunha 13% (estão em vigor 13,25%)

2º escalão, de mais de 7.703 até 11.623 euros: 19% (estão em vigor 18%)

3º escalão, de mais de 11.623 até 16.472 euros:  23,5% (estão em vigor 23%)

4º escalão, de mais de 16.472 até 21.321 euros: 25,5% (estão em vigor 26%)

5º escalão, de mais de 21.321 até 27.146 euros: 32% (estão em vigor 32,75%)

6º escalão, de mais de 27.146 até 39.791 euros: 34% (estão em vigor 37%)

7º escalão, de mais de 39.791 até 51.997 euros: 43% (estão em vigor 43,5%)

8º escalão, de mais de 51.997 até 81.199 euros: 44,75% (em vigor estão 46%)

O que a oposição critica é que se tenha passado a ideia, no discurso público, que a medida significaria uma redução efetiva 1.500 milhões de euros e que não tenha sido mencionado, até agora, o valor dos 200 milhões de euros.

Miranda Sarmento esclarece que a proposta vai aplicar-se aos rendimentos de todo o ano de 2024. No caso das tabelas de IRS, só se aplicará em 2025, mas os contribuintes deverão sentir já um alívio este ano, com as tabelas de retenção. Miranda Sarmento sublinhou que o governo tem como “princípio manter o equilíbrio orçamental”, de forma a continuar a trajetória da redução da dívida pública. Na apresentação do programa económico da AD, o agora ministro das Finanças indicou, quando falava das propostas de redução de IRS e IRC, que era um corte de 1,5 pontos percentuais da carga fiscal “que representa no total da legislatura menos 5 mil milhões de euros de impostos do que aquilo que seria cobrado se não fizéssemos nada do ponto de vista das medidas fiscais”. Esta declaração foi feita a 24 de janeiro, já o orçamento do PS estava em vigor.

Na SIC Notícias, Manuel Castro Almeida disse que o valor final de redução de impostos face ao aprovado por António Costa ainda não está totalmente fechado e até o colocou “à volta dos 300 milhões de euros”. O valor ainda está a ser alvo de discussão dentro de governo, deixando a porta aberta a que também haja alterações — além dos escalões — nas deduções fiscais.

Esta questão das deduções não foi referida por Joaquim Miranda Sarmento em declarações horas antes à RTP, quando admitiu que o impacto face ao já aprovado pelo anterior governo rondará os 200 milhões. A possibilidade de se mexer nas deduções fiscais de forma generalizada não consta no programa eleitoral da AD nem no programa do Governo (o que se prevê é uma dedução específica das despesas de alojamento dos professores ou das despesas com órgãos de comunicação social).

A AD também apostou as fichas na medida que ficou conhecida como o “15.º mês”, a isenção fiscal e contributiva dos prémios de produtividade atribuídos aos trabalhadores no valor de até 6% da remuneração base anual, até à “diminuição da carga fiscal sobre as empresas”, como se lê no programa do Governo.

Quando, em 2021, Miranda Sarmento disse que 200 milhões era um “impacto marginal”

Em outubro de 2021, quando o governo de António Costa apresentou a proposta de Orçamento do Estado para o ano seguinte (que semanas depois viria a ser reprovada na Assembleia da República provocando eleições antecipadas), Joaquim Miranda Sarmento defendia em entrevista ao Negócios e à Antena 1 que o impacto da redução 200 milhões estimados pelo então executivo para o IRS, que incluía o desdobramento dos terceiro e sexto escalões, era um “impacto marginal“. E criticava que tivesse sido anunciado como uma “festa”.

“O Governo fez uma festa com o desdobramento de escalões, sabendo nós que há 200 milhões de euros, no máximo, para esse desdobramento de escalões. É muito pouco, é 1,5% da receita de IRS de 2019 mas foi apresentado como uma enorme redução da carga fiscal, uma medida extraordinária”, afirmou, na altura.

No debate, em fevereiro, para as eleições legislativas com Luís Montenegro, Rui Rocha da IL também já tinha confrontado o líder da AD com o que dizia ser a pouca “ambição” da proposta social-democrata, calculando que a diferença face à proposta aprovada do PS seria de cinco euros por mês.

Montenegro respondeu que essa era uma “visão” da proposta fiscal da AD “muito redutora” e que a revisão das taxas era apenas uma parte do que propunha, mencionando a isenção contributiva e fiscal dos prémios de produtividade e a redução em dois terços do IRS para jovens até aos 35 anos.

Sobre esta última proposta, na entrevista que deu na sexta-feira à RTP, Miranda Sarmento reiterou que “qualquer jovem, independentemente das suas habilitações literárias, até aos 35 anos, quando a nossa proposta for aprovada, passará a pagar um terço do que paga hoje de IRS”.