Se querem tristeza e infelicidade, não precisam de ir mais longe: Kenneth Lonergan, realizador, dramaturgo, argumentista, é o vosso homem. Onde outros fazem filmes reconfortantes, Lonergan fá-los magoados. Nos três que já realizou, “Podes Contar Comigo” (2000), “Margaret” (2011) e agora “Manchester by the Sea”, a presença da morte pesa sobre personagens interiormente devastadas e a braços com situações pessoais e familiares, passadas ou presentes, muito dolorosas ou rasgadamente trágicas. E não há soluções “inspiradoras”, saídas fáceis ou redenções fofinhas para elas. Há que sofrer, há que aguentar e há que tentar ir fechando as feridas aos bocadinhos. Kenneth Lonergan filma os problemas, as aflições e as desgraças que podem cair em cima de qualquer um de nós a qualquer momento — e muitas vezes com culpas nossas no cartório.

[Veja o “trailer” de “Manchester by the Sea”]

A indigestão de fitas de super-heróis e de superproduções de fantasia e de ficção científica de que sofre actualmente a indústria cinematográfica americana, todas tão visualmente arrevesadas como sonoramente agressivas, fez com que “Manchester by the Sea”, um filme singela mas severamente realista sobre pessoas vulgares passado no Massachusetts, fosse saudado pela crítica dos EUA com revoadas de foguetes, grinaldas de encómios e rajadas de galardões e nomeações para prémios. Mas há 20 ou 30 anos, quando existia no cinema americano uma produção regular e estável de filmes de médio orçamento e temas ancorados na vida real das pessoas comuns, “Manchester by the Sea” seria apenas mais um bom exemplo do lote.

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[Veja a entrevista com o realizador Kenneth Lonergan]

Hoje, numa Hollywood viciada na desmesura narrativa, financeira e tecnológica, cada vez mais dependente do mercado global para a sua boa contabilidade, e onde a produção média de qualidade quase se extinguiu, a fita de Kenneth Lonergan faz figura de obra-prima, de “avis rara”, de fenómeno da indústria. Haja sentido das medidas, porque “Manchester by the Sea” é um caso de nem tanto ao mar, nem tanto à terra. Não é a obra magistral que muitos proclamam devido à penúria de filmes com estas características de aproximação à realidade, à gente de carne e osso e às suas dores. Mas também é injusto desvalorizá-lo pelo facto da crítica andar com ele nas palminhas por essa mesma razão. (Já ganhou vários prémios da especialidade, está nomeado para cinco Globos de Ouro e vai de certeza coleccionar nomeações aos Óscares).

[Veja a entrevista com Casey Affleck]

Estamos, assim, com os pés bem assentes no planeta Terra e nos antípodas dos filmes de super-heróis. Aliás, se há algum heroísmo em Lee Chandler (Casey Affleck, infinitamente melhor actor que Ben, o podão do irmão mais velho e um dos produtores da fita, com Matt Damon), é o de conseguir aguentar o que não seria suportável para a maioria das pessoas. Viver dia-a-dia com o fardo da culpa e o tormento da dor de uma tragédia familiar que o fez perder absolutamente tudo, o atirou da cidade natal (a Manchester do título) para Boston, onde sobrevive como zelador de imóveis, e o transformou num tipo solitário, bisonho, de poucas palavras e que provoca brigas nos bares por tudo e por nada. Como se levar pancada fosse a penitência com que paga os erros que cometeu, e que o conduziram onde está.

[Veja a entrevista com Michelle Williams]

Numa manhã de invernia, Lee recebe a notícia da morte do irmão, que tinha um barco de pesca e de passeios turísticos, e sofria de uma doença cardíaca rara, e ruma a Manchester. Uma vez lá, vai ter de tratar das formalidades do funeral, de se cruzar com pessoas associadas à vida feliz de outrora e à desgraça que a arruinou, e recebe uma notícia de que não estava à espera. O irmão nomeou-o tutor do sobrinho adolescente, Patrick, que não quer de forma alguma ir viver com o tio para Boston, porque tem a vida toda organizada em Manchester (anda no liceu, joga hóquei sobre o gelo, tem duas namoradas, toca numa banda, quer ficar com o barco do pai); e o tio de forma alguma quer ficar em Manchester, por razões óbvias. Pelo meio, em “flashbacks” bruscos, Kenneth Lonergan vai fazendo luz sobre o passado de Lee, da sua vida familiar e da do irmão.

[Veja a entrevista com Lucas Hedges]

“Manchester by the Sea” é um filme embrulhado no Inverno, tal como Lee vive num Inverno do coração e da alma. Lonergan segue-o nas suas movimentações e conversas com Patrick, e nos encontros com pessoas da sua vida anterior. Fá-lo com uma câmara serviçal e sisuda, um naturalismo parcimonioso, um recato emocional quase monástico, algum humor ocasional e quase sem dar fífias (tirando o momentâneo abuso de uma conhecida peça clássica na banda sonora). E com a consciência de que erros aparentemente indiferentes podem ter consequências irremediavelmente arrasadoras, de que há feridas que não saram por completo, desgostos que nunca serão suficientemente chorados, recriminações que se farão até à cova. Mesmo que o céu carregado da tristeza se vá rasgando aqui e ali e deixe entrar alguma claridade, como no final (muito) vagamente esperançoso do filme.

[Veja uma cena do filme]

Monopolizado pela interpretação de Casey Affleck, um mergulho de profundidade no sofrimento que à superfície se manifesta por monossílabos e uma expressão anestesiada, “Manchester by the Sea” conta ainda com um belo punhado de actores (Michelle Williams, Gretchen Mol, Matthew Broderick, Kyle Chandler, C.J. Wilson, o jovem Lucas Hedges na figura de Patrick) que não se afastam um milímetro que seja do severo comprimento de onda dramático do filme. É um estudo soturno da infelicidade pessoal feito com um realismo, um decoro emocional e uma verdade humana cada vez mais raros no cinema americano, deixado por conta dos super-heróis e das criaturas sobrenaturais, e que agora quase só se podem encontrar na televisão ou na Net. Não é por acaso que um dos parceiros de produção e distribuição de “Manchester by the Sea” é… a Amazon.

O que Eurico de Barros acha dos nomeados para Melhor Filme de 2016

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