António Costa não parecia António Costa no Parlamento, esta tarde. Recuou. Aceitou. Foi humilde. Pediu desculpas. Afinal tinha consciência. Até carregava essa consciência, pesada, e também para o resto da vida. A voz embargou-se. Pareceu sincero, finalmente, essa característica de fracos para os políticos maquiavélicos para quem tudo é simulação e dissimilação. Admitiu falhas no Estado. Lá teve de aceitar a demissão da ministra, até porque a senhora já nem conseguia manter a sua “dignidade pessoal” em público. Nem disso António Costa cuidou. Morreram cem pessoas. Morreram mais de cem portugueses. Morreram 106? Ou foram 107? Cada um conta. Foi o horror. Nenhum primeiro-ministro tem este currículo na democracia. Por isso, nenhum primeiro-ministro teve a arrogância e a desfaçatez e a insensibilidade demonstrada nos últimos dias por um secretário-geral do PS a anos luz do humanismo de Mário Soares, Jorge Sampaio ou António Guterres.

Marcelo foi Marcelo. Quando chegasse o momento, havia de se revelar Marcelo Rebelo de Sousa. O Presidente soft foi hard. O discurso de ontem à noite tinha atrás de si milhares, milhões daquelas selfies de que até Cavaco Silva desdenhou. Foi um discurso de um presidente poderoso. Que interpretou o sentimento do povo, de um país, de uma nação, quando o Estado, o Governo e todos os mecanismos lhe falharam. Marcelo falou como último recurso, como última instância de apelo a que os portugueses podiam recorrer. Cumpriu. Marcelo tinha atrás de si o poder de todos os “afetos” que distribuiu nos últimos dois anos. Ficam destes dias, duas imagens radicalmente opostas: a proximidade do Presidente às pessoas, aos cidadãos, aos eleitores; e a distância do primeiro-ministro, a frieza, a teimosia, o calculismo e o egoísmo político. Se querem uma lição sobre a proximidade entre eleitores e eleitos, ela está aqui. Não é preciso mudar leis eleitorais.

Marcelo esmagou Costa. O primeiro-ministro errou. A seguir persistiu no erro. Finalmente, capitulou. Rendeu-se. Ficou sem força. Percebeu, até que enfim, o que lhe tinha acontecido. O Presidente agigantou-se. Passou definitivamente da magistratura de influência para a magistratura de interferência. Esta quarta-feira é o dia inicial de Marcelo Rebelo de Sousa e o princípio do fim de António Costa. Há sempre um fim em política, mas esta é só uma maneira de dizer que o caminho do primeiro-ministro parece agora descendente. E o de Marcelo ascendente. Costa chegou ao Parlamento vencido. Derrotado pelo discurso mais explicitamente violento de um Presidente da República em democracia: nem Eanes no 25 de abril de 1977, nem Mário Soares a propósito da conferência Portugal Que Futuro?, nem Jorge Sampaio quando dissolveu a maioria de Pedro Santana Lopes foi tão violento.

Rebelo de Sousa foi chefe de Governo e chefe da oposição. Exigiu. O primeiro-ministro cumpriu. Obedeceu (bend the knee, como os fãs da Guerra dos Tronos sabem o que quer dizer). O PSD, decapitado, foi atrás. O CDS tinha-se antecipado e com a moção de censura levou o Presidente a passar a responsabilidade para o Parlamento: tanto lhe fazia. Se a moção fosse aprovada e o Governo caísse, até se acabava um “equívoco”.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

A correlação de forças entre Belém e São Bento ficou definida. António Costa tem feito das suas fraquezas forças. Tem sido essa a sua maior qualidade política. Perdeu as eleições, mas ganhou o Governo. Meteu na sua “geringonça” as forças anti-europeias como arma para cumprir as exigências da Europa. Com o PSD a fazer pairar sobre ele uma catástrofe económica, cumpriu o défice, baixou os juros, tem a economia a crescer e o desemprego a descer enquanto devolveu rendimentos. Mas não percebeu nada, como disse Marcelo. Excesso de confiança? Arrogância? Perante os dramas pessoais de milhares de familiares das vítimas, feridos, proprietários ou despojados, foi soberbo. Fez jogo político num tabuleiro onde o calculismo é uma ofensa. Esteve à cabeça de um Governo incompetente que falhou onde não podia falhar.

As fraquezas de Costa agora são só fraquezas. Marcelo pôs tudo à mostra. Os primeiros-ministros fracos fazem os presidentes fortes. Se Belém cresceu em influência por causa da fragilidade da solução governativa, a tragédia da gestão política de Costa só acrescentou outra desgraça às catástrofes. Nunca saberemos se outro Governo teria impedido as tragédias. Mas sabemos pelo menos que a gestão política deu cabo do resto. Costa não soube tratar da tragédia nem do pós tragédia. E a fraqueza de Costa é agora a força de Marcelo. A relação especial não será mais a mesma, depois de o professor ter tratado o seu antigo aluno com o nível de “infantilidade” que servia para ele acusar quem lhe perguntava sobre a demissão da ministra. Quem foi, afinal, mais maduro, nesta relação?

Estas duas semanas vão definir o resto do mandato e quem sabe o próximo ciclo político. Nas autárquicas, o PCP perdeu. Vai continuar a querer perder votos? Agora segura o Governo na moção de censura. Mas as ruas não vão estar tão pacíficas como na primeira metade do mandato. O Bloco de Esquerda, que hoje teve em Catarina Martins uma das melhores intervenções da tarde, a assumir o discurso de Marcelo e a fazer um discurso não sectário, deve ser o parceiro mais seguro. O PSD, em guerra interna, só daqui a meses voltará a normalizar-se, se é que isso vai acontecer tendo em conta as personalidades na corrida. Com a ausência do PSD, o CDS cresce. Assunção Cristas tem vários meses pela frente como verdadeira líder da oposição. A partir de agora temos um Governo tutelado pelo Presidente da República. António Costa aprendeu a lição tarde de mais. Que a próxima não nos custe tanto.