O que é um canto no futebol? Bola parada. E o que é um livre? Bola parada. Ou pelo menos era.

Um dia destes, alguém de direito chamou-nos a atenção para esse pormenor: não é uma bola parada, é um lance de estratégia. Mais uma novidade para este novo léxico futebolístico (e aqui temos de ser sinceros, a primeira vez que ouvimos esta foi no futsal e não no futebol), explicada da seguinte forma: “Se passamos tanto tempo durante a semana a preparar aquilo, é uma questão estratégica”. Justificação dada, bola para a frente.

O futebol evoluiu muito. E continua a evoluir, todos os dias. Na parte física, no plano tático, na vertente técnica, sobretudo em termos mentais. Hoje falamos de transições, de defesas mistas, de jogo entre linhas, de basculação. Sim, a basculação, aquilo que antigamente na bancada nos fazia levantar o braço e dizer “anda para aqui pá”. Era tudo mais simples. E é recuperando essa facilidade que encontramos a melhor palavra para definir este Boavista-FC Porto, “o dérbi mais antigo de Portugal”, como afirmou antes do jogo o estudioso técnico Jorge Simão: rasgadinho (e ganho pelo FC Porto sem precisar de lances de estratégia).

Ficha de jogo

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Boavista-FC Porto, 0-3

10.ª jornada da Primeira Liga

Estádio do Bessa, no Porto

Árbitro: Hugo Miguel (AF Lisboa)

Boavista: Vagner; Carraça, Sparagna (Rochinha, 76′), Rossi, Talocha; Idris, David Simão; Renato Santos, Fábio Espinho, Kuca (Mateus, 65′) e Yusupha (Leonardo Ruíz, 76′)

Suplentes não utilizados: Assis, Henrique, Vítor Bruno e Gilson

Treinador: Jorge Simão

FC Porto: José Sá; Ricardo, Felipe, Marcano, Alex Telles; Danilo Pereira (Diego Reyes, 90′), Herrera; Corona (André André, 71′), Brahimi, Marega e Aboubakar (Maxi Pereira, 86′)

Suplentes não utilizados: Casillas, Óliver Torres, Otávio e Galeno

Treinador: Sérgio Conceição

Golos: Aboubakar (50′), Marega (80′) e Brahimi (86′)

Ação disciplinar: cartão amarelo a Herrera (24′), Rossi (32′), Carraça (40′), Marcano (43′), Yusupha (47′), Aboubakar (51′), Sparagna (52′), Corona (65′), Danilo Pereira (90′) e Idris (90′)

O que significa essa palavra que tantas vezes nos dá saudade de utilizar? Com intensidade, nem sempre bem jogado, para homens de barba rija, sempre com o pé por cima, a disputar cada metro quadrado de campo como se fosse o último, sem que com isso houvesse maldade e vontade descarada de acertar em alguém. Mas que também tem o outro lado da medalha, quando sai fora de controlo: em tempo de seca, houve chuva de amarelos no Bessa…

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A primeira parte terminou com apenas cinco remates (1-4, a favor do FC Porto) e um enquadrado, curiosamente na única oportunidade flagrante quando Yusupha (um jovem avançado da Gâmbia que fez a estreia como titular e teve muitos pormenores de quem percebe da coisa com a bola nos pés), de calcanhar, obrigou José Sá a uma intervenção difícil por instinto. De resto, houve um cabeceamento muito por cima de Marcano (12′) e um remate isolado de Corona na área, de primeira, mas pegando mal na bola (40′). A esse nível, foi só isto.

Tudo o resto, ficou pelo meio-campo. E se o FC Porto ganhou a batalha da bola, o Boavista ficou com a guerra territorial: os axadrezados conseguiram, com a colocação das suas peças num bloco médio/alto, condicionar a primeira fase de construção dos dragões, obrigando o adversário a jogar mais direto e a perder a maioria dos duelos individuais contra a defesa contrária. Em paralelo, David Simão, o bispo que dá classe nesta equipa de Jorge Simão, ia dando uma outra projeção na posse, às vezes no meio-campo dos azuis e brancos.

Veio o intervalo, recomeçou o jogo e, pela primeira vez, as peças boavisteiras falharam: após um cruzamento largo de Corona para o segundo poste, Brahimi acreditou que ainda era possível chegar à bola, assistiu Aboubakar no coração da área e o camaronês teve apenas de encostar isolado para o primeiro golo do encontro (50′).

Foi um golpe duro no Boavista, que sofreu um golo no primeiro remate enquadrado do FC Porto. No entanto, e mesmo sabendo que se o resultado assim continuasse já não haveria margem para empate técnico, os visitados nunca deixaram de ser fiéis à sua estratégia, perdendo mesmo duas oportunidades flagrantes para restabelecer a igualdade através de Mateus (67′, sozinho na área, a rematar ao lado) e Idris (cabeceamento por cima na área também numa excelente posição, 75′).

Jorge Simão ambicionava mais. Queria evitar aquele xeque feito por Aboubakar. Mexeu na equipa, abdicando de um central (Sparagna) e colocando um médio-ofensivo para dar outra força no último terço (Rochinha). E foi isso que acabou por promover de forma inversa o mate do FC Porto, que terminou em 3-0 mas podia ter sido ainda mais, face ao total descalabro nos últimos minutos.

Depois de uma grande defesa de Vagner quando Herrera surgiu isolado na área (78′), Marega aproveitou da melhor forma uma assistência do mexicano para entrara na área e, com a parte exterior do pé, atirar de forma colocada para o segundo golo dos azuis e brancos aos 80′ (sim, este é outro pormenor: os dragões jogam com dois reis na frente, que são responsáveis por 60% do ataque portista até ao momento). Pouco depois, Brahimi entrou também pelo corredor central que estava com via aberta, entrou na área e escolheu o lado para também marcar (86′). E, nos descontos, o maliano ainda acertou uma bola no poste, o que seria um castigo ainda mais pesado para os visitados.

O futebol pode ser como o xadrez: numa jogada, tudo se perde. Mas nem isso tira mérito a tudo o que o Boavista fez ao longo dos 76 minutos, nem belisca o mérito que o FC Porto teve em aproveitar o momento certo para colocar as peças certas nos lugares indicados para fechar o resultado. Sérgio Conceição tem uma equipa com alto pendor ofensivo, mas que não perde a vertente pragmática. E foi isso que deu o triunfo no dérbi da Invicta e consequente regresso à liderança do Campeonato com 28 pontos em 30 possíveis.