Imagine, por exemplo, que os cerca de 4.500 táxis que circulam na área Metropolitana de Lisboa trocavam a tradicional combustão pela propulsão eléctrica. Reduziam-se as emissões poluentes em ambiente urbano, diminuía o ruído na cidade e baixavam também os próprios custos de operação para a empresa. Isto, claro, se a empresa estivesse disposta a investir – mas, já lá vamos.

Imagine agora, para tornar o quadro mais apelativo (para o seu bolso), que decidiu comprar hoje um carro novinho em folha a gasóleo e que, amanhã, “alguém” decide proibi-lo de circular na cidade. Nesse caso, tem duas hipóteses: ou vende e perde dinheiro, ou converte para eléctrico, gastando com isso menos que numa nova aquisição e continuando a ter o carro que escolheu há bem pouco tempo atrás, quando não existia no mercado nenhum modelo eléctrico com que se identificasse.

Outro cenário: tem lá em casa um desportivo já com uns bons anos e gostava que “aquilo” andasse mais. Também pode: são as chamadas conversões para eléctrico visando a performance, muito mais amigas da carteira (e do ambiente) que a aquisição de um superdesportivo zero quilómetros.

Mais um quadro: é proprietário de uma transportadora, com uma frota considerável de camiões e a mobilidade eléctrica encaixa-se perfeitamente na sua operação. Ganha mais renovando a frota da empresa através da compra de novos veículos pesados – e, neste caso, ainda vai ter de esperar que eles surjam a preços competitivos – ou saía-lhe bem mais em conta converter as viaturas que já tem, prolongando o respectivo ciclo de vida em mais 10 anos e baixando no imediato os custos de operação?

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A lista de casos em que a transformação de um veículo convencional, locomovido por combustíveis fósseis, num modelo eléctrico se perfila como uma alternativa a ponderar poderia continuar. Por isso, fomos tentar perceber se este promissor negócio navega em águas turvas ou transparentes, se vai de vento em popa, ou se encalhou nalgum lado…

Quero converter o meu carro em eléctrico. Consigo fazer isso em Portugal?

A resposta é sim. Já existem oficinas especializadas em veículos eléctricos, capazes de efectuar essa transformação. É o caso da EVolution, com quem nos sentámos à mesa para debater o tema em mais um encontro promovido pela ZEEV. Ora, segundo nos explicou Miguel Silva, não só isso é possível, como é também uma das questões que mais curiosidade suscita entre a sua clientela.

Face ao crescente interesse, somos levados a crer que este mercado pode vir a protagonizar um crescimento exponencial, sobretudo a partir do momento em que haja volume nos kits de transformação”, afirma Miguel.

Ao que diz, “tecnologicamente é viável”, ou seja, é possível agarrar num carro convencional, retirar todos os elementos mecânicos ligados ao funcionamento da combustão e colocar no seu lugar o equipamento eléctrico que permite a movimentação da viatura. Para tal, a EVolution está neste momento a montar os seus próprios kits de transformação. Isto é, neste momento ainda não existe à venda nenhum pack “milagroso” tipo chave-na-mão, pelo que a empresa reúne junto de diferentes fornecedores o equipamento eléctrico e electrónico de que necessita para efectuar a conversão.

Baterias para conversão

E demora muito?

Depende. O mais demorado, naturalmente, será o processo de desenvolvimento, ou seja, o tempo que a oficina que vai proceder à conversão tem de despender na programação de controladores, no esquema de colocação das peças, no desenho da caixa que vai alojar as baterias, na concepção dos próprios suportes, etc.

A partir do momento em que tudo isso está parametrizado, replicar a operação será relativamente rápido”, adianta Miguel Silva.

Dito de outro modo, depois de converter um Audi TT, por exemplo, a oficina fica de imediato com know-how para reproduzir rapidamente aquela transformação em qualquer Audi TT. Será, portanto, uma operação que pode tardar um par de meses quando é realizada pela primeira vez, mas que pode ser encurtada para semanas quando já há uma experiência no histórico.

Para se ter uma ideia do potencial deste negócio, na Holanda, há já várias empresas a operar que convertem, em eléctricos, veículos pesados movidos a gasóleo. Basta “enviar” para lá o camião que, passados três meses, este regressa com uma nova vida – eléctrica e já homologada.

E, se em vez de mandar para a Holanda, fizéssemos isso por cá. É ou não negócio? A AddVolt já faz isso, em parte. A startup portuguesa foi criada em 2014 por Bruno Azevedo, Ricardo Soares, Miguel Sousa e Rodrigues Pires e incubada no Parque de Ciência e Tecnologia da Universidade do Porto.

Neste momento, um camião frigorífico tem dois motores a gasóleo, um para a tracção e o outro só dedicado à refrigeração de mercadoria. O que nós fazemos é converter em eléctrico o que está dedicado à refrigeração, sem com isso afectar nada que se prenda com a tracção, potência ou segurança. O WeTruck – assim se chama a solução – é como se fosse uma caixa independente, que conseguimos viabilizar porque fomos lá fora certificar toda a tecnologia de acordo com as normas internacionais e que os próprios fabricantes de automóveis seguem”, explica Bruno de Azevedo.

Ora, esta simples conversão tem um potencial tremendo: para o operador, que vê baixar os custos da actividade; para o ambiente, pela óbvia redução das emissões e do ruído; e para a startup portuguesa, que abriu uma porta para um mercado de 4,8 milhões de camiões refrigerados a circular em todo o mundo, número esse que deverá “duplicar até 2025”, antecipa Bruno de Azevedo. Só na Europa, acrescenta, “há cerca de 1,1 milhão de veículos deste género, onde o WeTruck pode fazer a diferença”.

Portugueses tiveram a ideia de criar o WeTruck, para poupar combustível e reduzir a poluição

É seguro?

Miguel Silva garante que sim: “Em termos de segurança eléctrica, não há qualquer problema desde que se cumpram as regras associadas a um sistema eléctrico. Em termos de segurança mecânica, é importante respeitar as massas. Há que garantir que a distribuição de pesos é a correcta e que o próprio peso do veículo é respeitado.” A resposta permite-nos chegar a uma outra conclusão: que não haja ilusões – um “charuto” vai ser sempre um “charuto”; não há chaço que se converta electricamente numa “grande bomba”.

A propósito, a EVolution sublinha que as conversões visando a performance podem obrigar ao reforço do sistema de travagem ou mesmo a reforços estruturais, de modo a não comprometer a segurança.

Num caso extremo, isto é, admitindo que uma viatura convertida em automóvel eléctrico se vê envolvida num sinistro, é preciso também garantir que a equipa de intervenção que acorre ao local não se depara com um esquema fora do padrão. “Na ausência de guidelines a esse respeito, o que fazemos é tomar como referência os modelos eléctricos que já existem no mercado”, adianta Miguel Silva.

É fácil homologar um veículo convertido?

Este é o ponto em que uns dizem uma coisa e outros outra. Diz quem já se viu nestas andanças que o processo, mais que moroso, é de desfecho incerto. Escrito de outro modo, corre-se o risco de gastar tempo e dinheiro numa conversão e, depois, não ter essa transformação legalmente validada. Já o organismo que trata dessa homologação, o Instituto da Mobilidade e dos Transportes (IMT) pinta um quadro quase cor-de-rosa.

Pedro Faria, da UVE – Associação de Utilizadores de Veículos Eléctricos, define-se como um “electrónico amador”. Em 2008, comprou na Alemanha um Ford Probe de 1995, por menos de 2.000€. “O carro estava em excelente estado, em termos de chapa de e de interiores. Só tinha o motor partido”, relata. Vai daí, o seu hobbie de sexta-feira à noite passou a ser o de converter o Ford, numa operação que estava a ser também efectuada do outro lado do Atlântico.

Basicamente, o que fiz foi seguir uma transformação que estava a ser feita nos Estados Unidos de um modelo igual ao meu. Foi fácil, o carro ficou perfeito, mas nunca foi legalizado”, lamenta.

Ford Probe

Fonte da ANECRA, por seu lado, conhecedora das dificuldades que o GPL atravessou em Portugal, antecipa que a conversão de carros convencionais em eléctricos reúne todos os requisitos para se arrastar por tempo incerto no IMT. “Basta pensar que, neste momento, temos um ou dois técnicos no IMT que tratam de todas as transformações e que quem quiser a homologação tem de ir para a fila, juntamente com os carroçadores…”

Ao Observador, o discurso “oficial” foi bem diferente. Se quem pretende fazer uma conversão se queixa que não há um enquadramento que defina quais os requisitos específicos, para o IMT aparentemente isso não constitui problema. Quando perguntámos que requisitos são exigidos, Ângela Machado, assessora do Conselho Directivo, basicamente “passou por cima” da questão: No âmbito de um processo de aprovação da alteração de características de um veículo para funcionar a tracção eléctrica, o IMT avalia o cumprimento dos requisitos relativos à instalação eléctrica, à direcção e à travagem do veículo.” Dito assim, parece simples, mas continuámos sem saber que requisitos são esses…

A verdade é que, segundo os dados cedidos pelo IMT, não só a conversão pode ser homologada, como isso já aconteceu, não é caro e, para cúmulo, nem é preciso (des)esperar muito. “Desde 2008, existiram 14 alterações de veículos que implicaram uma mudança de combustível, onde o novo tipo de combustível é ‘eléctrico’ e o antigo era gasolina em todos. Assim, houve 10 alterações em 2008, duas em 2009, uma em 2010 e outra em 2011.” Curiosamente, “a partir de 2011, e até hoje não ocorreram mais alterações deste tipo”.

Embora reconheça que “não existe uma equipa dedicada a este tipo específico de alteração das características do veículo”, ou seja, o caminho é mesmo a fila dos carroçadores, o IMT assegura que entre a entrada de um processo e a respectiva aprovação, “o tempo médio de resposta ao pedido é de 22,5 dias úteis nos serviços desconcentrados do IMT”. O que significa seis semanas e não seis meses como nos relataram vários conhecedores directos deste tipo de certificação. Sem a qual, recorde-se, não pode haver seguro e, sem este, o veículo transformado não pode circular.

O processo de homologação implica o pagamento de uma “taxa correspondente ao montante de 150€” e é condição essencial para subscrever uma apólice junto de seguradoras como a OK Teleseguros, das mais “abertas” a este tipo de novidades.

Quanto custa?

Esta será a questão-chave para muitos. De momento, a conversão é a forma mais barata de ter um carro eléctrico. O kit básico da EVolution arranca nos 9.900€, a que há que juntar o IVA. Tendo em conta que um Renault ZOE 240 Life pode, neste momento, ser adquirido por 32.410€; que um Nissan Leaf arranca nos 29.150€ ou que até o pequeno Volkswagen e-up! custa, no mínimo, 27.769€, os 9.900€ da transformação são um valor muito interessante. Sobretudo, considerando que o cliente fica exactamente com o carro de que mais gosta (tanto que o comprou) e não condicionado pela actual oferta de modelos eléctricos, cujo boom nunca ocorrerá antes de 2020 ou, até mesmo lá mais para a frente.

Mas há ainda outra vantagem na conversão: à medida que a tecnologia das baterias for evoluindo – e o caminho aponta para que sejam mais compactas, leves e com maior densidade energética – o custo tenderá a baixar. Por uma razão muito simples, volume! Ou seja, tudo indica que este é um daqueles casos em que a espera pode valer a pena, ou porque se poupa (no custo) ou porque se ganha em performance e autonomia…

Como é que todos ganham?

Simples: ganham os que fazem a conversão – e esta pode muito bem ser a tábua de salvação para muitas oficinas; ganha o cliente, que pode escolher que eléctrico quer ter e não que eléctrico pode ter (face à oferta disponível no mercado), numa operação em que (ainda por cima) não gasta tanto; ganha o ambiente, porque há menos emissões poluentes; ganha a “paisagem” sonora, porque haveria menos ruído. Mas, e os construtores automóveis, o que ganham com isto?

Aqui chegados, importa clarificar que, em Portugal, nenhuma conversão de um veículo com motor de combustão interna pode ser homologada sem que, da parte do fabricante do automóvel em causa, haja uma declaração a autorizar essa transformação. Ao que nos foi dito, seja por uma questão de imagem; seja por uma questão de segurança; seja até por uma questão de sobrevivência (os construtores querem continuar a vender carros novos, imaginem!), essa autorização corre grande probabilidade de não ser obtida. Mas há quem acredite, junto dos contactos que efectuámos, que esse obstáculo pode ser ultrapassado a partir do momento em que as marcas se apercebam que “têm muito mais a ganhar, se junto do consumidor passarem a ter a imagem de que querem fazer parte da solução e não do problema”. Isto é, sabendo-se que a confiança dos consumidores nos diesel e gasolina cai de dia para dia, à medida que vão sendo impostas restrições à circulação de veículos que queimam combustíveis fósseis – ou se teme que venham a ser –, as marcas tenderão a ganhar capital de confiança junto dos seus clientes se lhes venderem um carro que, dali a uns meses ou poucos anos, pode ser reconvertido se for caso disso.

Mas não deixa de ser descabido, se não mesmo ridículo, que “eu” precise de uma autorização da marca a quem comprei o “meu” carro para fazer com o “meu” carro aquilo que eu entender e não aquilo que a marca me deixa fazer com um bem que já não “lhe” pertence… Será que isto acontece porque, com esta imposição, o IMT garante que não é inundado de processos visando certificar transformações cuja responsabilidade de garantir que são seguras faz parte das suas competências? A pergunta, naturalmente, não terá resposta oficial para lá do institucionalmente correcto. Contudo, ao que apurámos, serão mais os casos em que a homologação das conversões se arrasta ao ritmo do “traga lá mais este papel”, que não é exigido em mais nenhum outro país “civilizado”, do que os processos que entram e saem nos tais 22,5 dias. Para ter uma ideia dos “trâmites”, saiba que um Smart a gasolina foi reconvertido para eléctrico em 2007 e só em 2011 conseguiu a necessária homologação. Quatro anos depois e não sem antes de a empresa interessada ter movido “mundos e fundos” para ver se encerrava de vez um romance mais dado ao drama do que a um final feliz.