Se até há umas horas me tivessem perguntado com quem no mundo gostaria de trocar de lugar, qual telefilme de ficção científica com laivos de Disney, não teria hesitado na resposta: com Anthony Bourdain, o exímio contador de histórias que ganhava a vida a comer e a viajar. O ex-chef tinha aparentemente uma vida aspiracional, mas colocou-lhe um ponto final num quarto de hotel algures por esse planeta que fez parecer um mero T0. O homem que nos ensinou que a ligação directa entre o estômago e o coração é aquilo que nos faz parecidos, independentemente da nacionalidade, aparentemente negligenciou outro dos seus órgãos vitais: a mente e a sua saúde.
Bourdain era uma estrela rock numa altura em que já não há estrelas rock. Muitas das pessoas que vejo lamentar a sua morte fazem-no com a mesma intensidade e desconsolação com que lamberam as feridas de perder um David Bowie ou um Leonard Cohen. Sarcástico, cru e exigente, o divulgador gastronómico partiu o molde do que era até então um programa sobre comida. Tornou-os mais honestos, menos plásticos, mais poéticos. Elevou aquilo que era até então meia hora de pessoas sorridentes a fritarem coisas e a acharem tudo delicioso a uma obra de arte. Não é à toa que figuras de relevo do cinema participaram activamente em episódios de “Parts Unknown” – como o realizador Darren Aronofsky (de “Black Swan”), que realizou um episódio em Madagáscar; ou o director de fotografia húngaro Vilmos Zsigmond (“Deer Hunter”), que participou activamente no episódio no seu país natal. Era como se de repente o realizador Miguel Gomes do premiado “Tabu” fosse chamado para fazer um programa de Filipa Vacondeus.
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Há um Antes e um Depois no reino televisivo com Bourdain. São inúmeros os programas que ambicionam atingir o mix certeiro de humor, poesia e realidade que o ex-chefe trouxe à televisão. São inúmeros os que falham, cópias deslavadas sem a verdade do original. Os primeiros programas de Anthony, ainda no algo quadrado Food Network, foram assumidos como o próprio como uma tentativa egoísta de juntar os seus prazeres, o garfo e o avião.
[Em ambiente de diversão, com a namorada e o diretor que admirava. Veja o último vídeo de Bourdain]
Após o sucesso do livro autobiográfico Kitchen Confidential a editora terá perguntado ao agora autor de best sellers o que queria escrever a seguir. Algo saturado da vida na cozinha do Les Halles – era o primeiro a admitir que não era o mais inspirado dos seus pares –, Bourdain fez aquilo que em bom português se chama “atirar o barro à parede”: disse que queria escrever um livro no qual andasse pelo mundo em busca da refeição perfeita. A editora disse só ter fundos para essa aventura se metesse um canal de televisão ao barulho. E assim nasce a estrela televisiva algo relutante, o pesadelo dos produtores que recusa repetir takes só para poderem ser filmadas do modo correcto.
O tal livro é A Cook’s Tour (de 2002) e o programa veio a dar origens ao sucesso “No Reservations”, no ar até 2012. Em 2013 Bourdain troca o canal de culinária e as suas limitações temáticas pela CNN e estreia “Parts Unknown”, do qual estava a gravar mais uma temporada quando se suicidou (a última foto de Instagram, com quatro dias, mostra-o a comer uma espécie de cozido à portuguesa na Alsácia). “Parts Unknown” assume mais livremente aquilo que já há muito o seu trabalho demonstrava – que falar sobre comida é muito mais do que falar sobre o que se come, é explicar a condição humana e os seus diferentes fascículos por esse mundo fora. Contador de histórias é mesmo a profissão que lhe assentava melhor se tivesse de preencher um formulário na Loja do Cidadão.
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A olho nu, Anthony Bourdain era um sobrevivente. Kitchen Confidential descreve um cozinheiro autodestrutivo, com uma inclinação forte para álcool e drogas (incluindo uma longa dependência de heroína que quase o matou). Este carimbo de homem que já viu tudo e passou por tudo dava-lhe agora o betão para as fundações de um viajante destemido, que tanto provava partes bizarras de animais estranhos num lugar de fazer a ASAE bradar aos céus como comia o acepipe mais gourmet no restaurante mais conceituado.
Jantava com Obama no Vietname, ia aos fados com Lobo Antunes em Lisboa, gravava um especial de Natal com os Queens Of The Stone Age. Bourdain sabia que a comida era tudo – não só porque vai da sandes de leitão ao sashimi de peixe balão, mas porque era uma demonstração de criatividade. Questlove, baterista dos The Roots (a banda do programa de Jimmy Fallon) e também ele divulgador gastronómico escreveu esta tarde no seu Instagram:
“Anthony acreditava, e falava várias vezes disso, que todas as formas de criatividade estavam ligadas: como os chefs e os bateristas e os comediantes e os actores e os realizadores e os pintores todos iam beber ao mesmo poço de pensamentos e emoções”.
O próprio Bourdain não se ficou apenas pelo que à gastronomia dizia respeito: foi um dos guionistas da série de ficção “Treme”, criada por David Simon (“The Wire”) para mostrar as feridas abertas da Nova Orleães pós-Katrina.
Mais recentemente, Anthony era um empenhado activista do movimento Me Too, não se escusando a posts agressivos sobre o tema. A causa dizia-lhe respeito de um modo muito directo – Bourdain era actualmente namorado da actriz e realizadora italiana Asia Argento, a mesma que há poucas semanas subiu ao palco de Cannes para denunciar como o produtor Harvey Weinstein a violou naquele mesmo festival. No dia em que se iniciou o julgamento do ex-dono da Miramax, o viajante colocou no Instagram uma imagem de uma pintura de um dependurado, com a legenda “começa hoje: #weinstein”.
Muito se irá agora teorizar sobre o porquê de um homem que tinha sucesso, dinheiro e até amor ter escolhido suicidar-se de modo tão inesperado para os seus fãs. Bourdain morreu como viveu, segundo as suas próprias regras e escolhas. Num quarto de hotel, como reza o cliché da estrela rock que foi até ao fim. A sua última refeição, pergunta padrão que tanto lhe fizeram em entrevistas, permanecerá o derradeiro mistério do seu sorriso sarcástico.
Susana Romana é argumentista e professora de escrita criativa