Foi uma vitória, mas pode não durar mais que um dia. O CDS conseguiu que a votação do PSD, do PCP e do Bloco de Esquerda fizesse aprovar o seu projeto de lei para eliminar o adicional do imposto sobre os combustíveis e Assunção Cristas queria que tivesse efeitos imediatos no bolso dos contribuintes, mas se a lei vier mesmo a ser alterada depois do debate da especialidade, só vai poder valer a partir de 1 de janeiro de 2019. Este é o entendimento escrito numa nota técnica que os serviços da Assembleia da República enviaram aos grupos parlamentares, e também ao governo, no final de maio. Ou seja, já todos sabiam que havia riscos de inconstitucionalidade desta alteração à lei, caso fosse aprovada tal como está.

No dia 23 de maio, os serviços da Assembleia da República enviaram notas técnicas aos grupos parlamentares sobre os projetos de lei do CDS e do Bloco de Esquerda (que propunham a eliminação do aumento extraordinário de seis cêntimos do imposto sobre produtos petrolíferos aprovado em 2016), onde alertavam para os “impactos orçamentais” de ambas as iniciativas legislativas. Os serviços da Assembleia da República sugeriam, por isso, que a data de entrada em vigor dos diplomas, a serem aprovados, fosse arrastada para “o momento de entrada em vigor do Orçamento do Estado” seguinte. Ou seja, a 1 de janeiro de 2019, para não afetar a receita do Orçamento que está atualmente em vigor.

A aprovação desta iniciativa pode representar uma diminuição das receitas do Estado previstas no Orçamento, uma vez que põe fim aos aumentos, estabelecidos por portaria, do valor das taxas unitárias do imposto sobre os produtos petrolíferos e energéticos aplicáveis no continente à gasolina sem chumbo, ao gasóleo rodoviário e ao gasóleo colorido e marcado. Assim, justifica-se, em caso de aprovação, ponderar diferir a produção de efeitos ou a entrada em vigor da lei em causa para o momento da entrada em vigor do Orçamento do Estado subsequente à sua aprovação”, lê-se na nota técnica dos serviços, disponível no site da AR.

Os dois argumentos usados pelos serviços, que foram inclusive apresentados ao Governo em notas técnicas semelhantes, passavam pela salvaguarda da norma-travão, prevista na Constituição, que impede a apresentação de iniciativas legislativas que “envolvam, no ano económico em curso, aumento das despesas ou diminuição das receitas do Estado previstas no Orçamento”; e pela impossibilidade de um projeto de lei, do Parlamento, poder revogar uma portaria do Governo. Foi, aliás, em parte por causa deste argumentos que o PCP decidiu abster-se em vez de votar a favor.

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Ora, apesar de ter conhecimento de todas estas reservas, o CDS manteve durante o debate desta quinta-feira à tarde a ideia de que é para entrar em vigor o quanto antes, de forma a garantir a neutralidade fiscal prometida pelo Governo. Questionado pelo Observador sobre a existência da nota técnica dos serviços, o deputado Pedro Mota Soares disse que discordava do entendimento dos serviços técnicos, que o seu projeto não punha em causa a norma-travão, e que deve “entrar em vigor o mais depressa possível”. Para o deputado centrista, a neutralidade fiscal está assegurada porque aquilo que o Estado perderá no imposto petrolífero está a ganhar no IVA cobrado sobre os combustíveis que tem vindo a subir por causa do agravamento do preço dos combustíveis.

Ex-secretário de Estado explica porque projeto do CDS é inconstitucional

Não é contudo esta a opinião do ex-secretário de Estado dos Assuntos Fiscais, Sérgio Vasques. Em declarações ao Observador, o especialista em assuntos fiscais defende que o projecto de lei do CDP-PP “é inconstitucional por violação da “lei-travão”, isto é, do art.167º, nº2, da Constituição”.

Esta norma, lembra o antigo secretário de Estado de um Governo socialista, “proíbe que os deputados e grupos parlamentares apresentem projetos de lei de que decorra aumento da despesa ou diminuição da receita no ano em curso”. O projeto do CDS elimina a portaria aprovada em 2016 que fixou as taxas do imposto, repondo os valores que estavam em vigor em 2008, o que na prática teria o efeito de uma descida de quase quatro cêntimos no imposto sobre a gasolina e de 6,5 cêntimos por litro do imposto sobre o gasóleo.  Para Sérgio Vasques, esta iniciativa representa uma redução das taxas aplicáveis aos combustíveis.

“Uma vez que a portaria é de aplicação imediata, é clara a inconstitucionalidade. Trata-se de uma medida que só poderia ser aprovada por iniciativa do próprio Governo, a quem cabe a gestão do Orçamento. No limite, pode admitir-se que esta lei tenha a sua eficácia suspensa até 1 de Janeiro de 2019. Aplicação no ano em curso, não pode ter. Os proponentes terão com certeza presente a lei-travão, pelo que me parece tratar-se de uma medida com um objetivo essencialmente político, a condicionar a discussão do OE 2019”.

O professor da Universidade Católica destaca ainda dois pontos. “Primeiro, que é irrelevante ao caso que esta redução da receita fiscal possa ser mitigada pelo crescimento de outras receitas, sejam o IVA, o IRC ou quaisquer outras. A aplicação da lei-travão faz-se olhando ao efeito concreto de cada proposta e é certo que desta resulta quebra da receita. Depois, vale a pena lembrar que, entrando em vigor esta lei a 1 de Janeiro de 2019, e estando o seu efeito na mera reposição em vigor de portaria de 2008, o Governo é livre de, na mesma data, aprovar portaria que fixe as taxas do ISP no nível que entenda, tendo em conta os preços do petróleo que vigorem daqui por seis meses. Tal qual está, o projeto de lei é largamente inconsequente“.

A aprovação pelo Parlamento de um iniciativa legislativa para mexer na taxa do imposto petrolífero, que é matéria da competência do Governo, será aliás inédita. Contactado pelo Observador, o secretário-geral da APETRO (associação das empresas petrolíferas), António Comprido, afirma não se recordar de ter havido alguma outra ação com este alcance.

CDS admite descida só em 2019

No projeto do CDS que foi aprovado esta quinta-feira não há qualquer referência à data de entrada em vigor da lei. O CDS deixou isso em aberto para ser fechado em sede de especialidade, onde Assunção Cristas já admitiu, logo à saída do debate parlamentar, que possa acontecer “no limite dos limites, a 1 de janeiro de 2019”.

Mas empurrar para 2019 era precisamente aquilo que o CDS parecia queria evitar, ao obrigar o Parlamento a debater este tema agora. O PS já tinha aberto a porta ao debate no âmbito do Orçamento do Estado para 2019 — ano de eleições –, mas o CDS mostrava urgência em que entrasse em vigor já este ano. Apesar de tudo, o partido já sabia que isso dificilmente aconteceria, tendo em conta as reservas dos serviços e dos restantes partidos que, ao longo do debate, levantaram várias dúvidas de legalidade e constitucionalidade.

Aliás, no PS, o vice-presidente da bancada parlamentar João Paulo Correia diz ao Observador que é “de duvidosa legalidade e constitucionalidade” que uma portaria do Governo seja alterada a partir de um projeto de lei. Quando a discussão avançar na especialidade, o PS admite a hipótese de pedir um parecer à comissão de Assuntos Constitucionais sobre esta matéria. Também o PCP tinha deixado claro, logo durante o debate, que o projeto do CDS não podia “ficar como está”, empurrando para a especialidade uma clarificação do momento da entrada em vigor.

Se a descida do imposto petrolífero avançar apenas em 2019, nesse caso levanta-se outra questão. Se é certo que agora, por via do aumento do preço dos combustíveis, o Estado está a arrecadar mais receita no IVA, tendo margem para baixar o imposto petrolífero, não há garantia de que essa neutralidade fiscal exista no próximo ano. Ou seja, se os combustíveis baixarem de forma expressiva e a receita do IVA cair, a descida do imposto petrolífero pode vir a provocar um rombo na receita fiscal dos combustíveis no próximo ano, como aconteceu em 2015. Foi esta situação que o Governo usou como justificação para fazer um aumento extraordinário do imposto em 2016.

Outra dúvida, deixada pelo secretário de Estado dos Assuntos Fiscais, é se a baixa do imposto vai ser toda refletida no preço final pago pelos consumidores. No debate, António Mendonça Mendes considerou que as iniciativas para baixar o ISP iam provocar perda de receita para o Estado, avisando que não há garantia de que cheguem ao preço final que é fixado pelas petrolíferas. Ainda que o imposto seja a principal fatia do preço pago, se uma descida da carga fiscal coincidir com um momento de subida do preço antes de impostos, isso pode neutralizar o efeito no valor pago pelos consumidores.