Na seleção francesa, Griezmann e Mbappé são as estrelas, os heróis prováveis. Os homens da frente, da técnica, do recorte, do talento, dos golos. Mas a história também se escreve com os outros heróis, os improváveis. Aqueles que jogam alguns metros mais atrás mas que, de lá detrás, comandam uma equipa. É o caso de Kanté. Tem golo no nome, não tanto nos pés, mas tem pulmões para dar e vender. É incansável na recuperação de bolas, tapa todos os buracos para a sua baliza, mas não se fica por aí; também sabe conduzir a bola, oferecer linhas de passe, decidir quase sempre bem.
É uma das principais armas da França neste Mundial – e vai ser, certamente, uma das dores de cabeça da Bélgica na meia final diante dos gauleses. Os números não nos deixam mentir: Kanté já correu 52 quilómetros na prova, recuperou 52 bolas e acertou 276 passes em 308 realizados. Ou seja, sabe roubar a bola ao adversário, mas também tem pezinhos para a colocar onde quer. E tudo isto, do ‘baixo’ dos seus 1,68m (e já vai perceber a importância da altura na história que lhe vamos contar).
O parceiro de meio-campo, o ‘gigante’ Pogba – tem 1,91m, mais 23 centímetros do que Kanté – não tem dúvidas de que a grandeza é relativa. “Deve ter 15 pulmões, caso contrário não entendo como pode correr tanto. O grande é ele”, diz o médio, citado pela Marca. Didier Deschamps também não poupa elogios ao pupilo. “É um gigante, o melhor do mundo na sua posição”.
Uma infância a recolher lixo na rua
Talvez tudo fosse diferente se N’Golo Kanté não tivesse tido a infância que teve. Nasceu em Paris, filho de pais emigrantes, que tinham trocado o Mali pela capital francesa. É o mais velho de quatro irmãos e irmãs. Moravam todos na Rueil-Malmaison, um subúrbio fortemente povoado, onde o futuro jogador, ainda com sete anos, começou a recolher lixo na rua para ajudar os pais. Caminhava quilómetros e quilómetros em busca de material que pudesse ser, depois, entregue a empresas de reciclagem para ser reaproveitado. Quilómetros que passaram a ser mais aos 11 anos, quando lhe morreu o pai. Era preciso dinheiro, mais do que nunca.
Por essa altura, o futebol era um sonho difuso que ganhou contornos mais definidos em 1998, por altura do Mundial. Kanté, ainda com sete anos, viu uma França multirracial, a França de Thierry Henry, de Patrick Vieira, de Lilian Thuram, a França que elegeu emigrantes como ídolos.
Lembra-se de lhe dizermos que a baixa estatura cumpria um papel importante nesta história? É que quando vemos Kanté ser campeão pelo Chelsea, comandar a seleção francesa ou valer uma proposta de 132 milhões de euros do PSG (como tem sido noticiado na imprensa internacional), dificilmente poderia imaginar que os primeiros anos do jogador foram uma sucessão de ‘nãos’, de portas fechadas, de olhares de desconfiança.
Depois de muitos clubes rejeitarem o jogador, Kanté conseguiu assentar arraiais no JS Suresnes, emblema do subúrbio de Paris. De início era olhado de lado – afinal como poderia um jogador tão pequeno aguentar 90 minutos em campo? Não só aguentou como o clube começou a ganhar assim que passou a contar com o médio (e neste caso, dificilmente há coincidências). Kanté celebrava os títulos de forma sóbria e até distante, como se nada tivessem a ver com ele (claramente tinham).
Aliás, a sobriedade é uma das notas da personalidade do jogador. Ainda hoje, e mesmo ganhando numa semana o que não teria ganho uma vida inteira a recolher lixo ou a jogar num clube do subúrbio parisiense, Kanté não dá sinais evidentes de riqueza. Não usa joias nem roupas caras, muito menos coleciona carros de alta cilindrada na garagem. Conduz um Mini Cooper, que veio substituir a scooter com que chegava aos treinos no Chelsea. Tal como acontece dentro de campo, com a classe que espalha a cada desarme ou a cada passe, também fora das quatro linhas Kanté foge ao padrão das estrelas.