No primeiro dia de NOS Alive, o palco principal do festival esteve virado para o rock dos Arctic Monkeys e Nine Inch Nails. Assim continuará nos próximos dois dias, com The National e Queens of The Stone Age (sexta-feira, 13) e com Alice In Chains, Franz Ferdinand, Jack White e Pearl Jam (sábado, 14) a garantirem que o festival prossegue no comprimento de onda das guitarras. Nos dois palcos secundários do NOS Alive — Sagres e NOS Clubbing –, contudo, ouviu-se sobretudo hip hop e R&B contemporâneo neste primeiro dia. Populares entre os mais novos, estes géneros musicais foram escolhas acertadas num dia em que o grande chamariz do festival era uma banda de rock sub-40 — e que tem por isso um público que é em parte coincidente. Quem disse que o rock e o hip hop não podem andar de mãos dadas?

A grande confirmação Papillon: “Isto é muito lindo”

Até ver, é a grande revelação da música portuguesa deste ano. Papillon (Rui Pereira), termo francófono que significa “borboleta”, rompeu o casulo com estrondo quando lançou Deepak Looper. O jovem rapper de Mem Martins, Sintra, que é também membro do coletivo GROGNation, lançou o primeiro álbum a solo com produção executiva e supervisão do seu parceiro Slow J (João Batista Coelho), outro dos grandes novos talentos da música portuguesa.

Quem ouviu o disco, que foi editado em março, percebeu que se trata de um objeto único, musicalmente muito rico e revelador de uma caneta apurada. Quem viu Papillon apresentar o álbum nos Estúdios Time Out, em Lisboa, em concerto esgotado e com o público a cantar as letras do início ao fim, percebeu que o rapper é mesmo um fenómeno em ascensão. Hoje, no NOS Alive, Papillon teve o primeiro concerto de consagração e percebeu-o cedo, pela reação das pessoas ao primeiro tema “Impulso”: “Isto é lindo. A sério, isto é muito lindo”, exclamou.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Papillon juntou-se a Slow J: o hip hop em 2018 não vai ser o mesmo

O palco NOS Clubbing estava cheio para assistir à primeira grande estreia do rapper a solo num festival de grande dimensão. A grande maioria do público era composta por jovens, que viram Papillon dar um concerto sem grandes quebras ou momentos mornos — em parte, porque também o disco é muito coeso, não havendo temas facilmente descartáveis. “1:AM” veio logo a seguir à primeira canção e colocou Papillon a rimar sobre a forma como contrariou as (baixas) expectativas do pai. Mas com um ligeiro twist no final: “Aquilo que o meu pai não sabe / é que eu hoje eu vou-me mandar” virou “Aquilo que o meu pai não sabe / é que hoje eu estou no Alive“.

Os convidados do disco apareceram em palco para abrilhantar o concerto: primeiro Slow J,”uma pessoa e um artista inacreditável”, no tema “Imbecis / Íman”, mais tarde Plutonio, para participar na festa de ritmo afro “Iminente”. O último seria desafiado em palco — “Eu sei que não te avisei, mas…”, disse Papillon — para cantar a capella os versos da sua canção “Tu Não Vales Nada”, o que fez. Um tema que Papillon disse que, quando ouviu, pensou: “Gostava de tê-lo feito”.

15 fotos

Depois de participar em “Imbecis / Íman”, mas antes de sair do palco, Slow J apresentou Papillon como “uma pessoa e artista inacreditável, que merece tudo o que está a acontecer aqui”. O que estava a acontecer era uma festa de grande comunhão entre o rapper de Mem Martins e o público. Uma festa em que se celebrou a cultura hip hop — “Quando eu disser hip, vocês dizem hop”, pediu Papillon antes de apresentar o DJ que o acompanhava, X-Acto, a que se somava um guitarrista e um baterista, num formato de banda completa sem uso abusivo de vozes e instrumentos pré-gravados que fortaleceu o concerto.

Não posso continuar sem dizer o quão grato estou por estar neste palco, neste festival fantástico com artistas fantásticos. Sou a pu** da prova viva de que os sonhos podem concretizar-se. É mesmo, mesmo possível”, afirmou, reforçando assim a importância que este concerto tem no seu percurso artístico.

A acelerada “Impressões”, que em alguns momentos lembra os Da Weasel e em que Papillon diz que não é “como toda a gente”, que “essa gente não sabe como eu sou” e que o seu coração “é diferente”, foi outro dos pontos altos. Tanto assim foi que, quando o tema terminou, o público começou a gritar “Papi, Papi, Papi” e o rapper escondeu a cara com as mãos, fechando os olhos, visivelmente feliz pelo momento. “Acho que os próximos artistas vão ter que me perdoar mas não me apetece sair deste palco neste momento”, apontou então.

“I’m the Money” era a faixa que se seguia, com Papillon a rimar de forma mais agressiva sobre a batida composta pelo produtor português Lhast. Com versos afiados, antecedeu uma ótima sucessão dos temas “Imagina” e “Impec”. Sobre o primeiro, Papillon revelou que ponderou “não o escrever, não o fazer e não o apresentar aqui”, o que talvez se justifique pelo tom confessional da canção, que começa com os versos “Nunca vi os meus pais trocarem um beijo / Amor todos falam dele, mas eu nunca o vejo”. É a canção mais vulnerável de Deepak Looper e, seja por ser inspirada na vida dos pais do rapper ou por, sendo ficcional, poder provocar leituras nesse sentido, percebe-se o pudor. Certo é que é um belíssimo tema e um daqueles em que Papillon melhor consegue contornar alguns dos clichés deste género musical. A segunda, pelo instrumental apurado concebido por Slow J (que voltou a palco para o tocar à guitarra) e pela quietude da letra, é outro momento alto do disco, mais um que confunde estereótipos de género. Sobre Slow J, que o ajudou a fazer o disco, Papillon deixou ao público uma mensagem simples que soou a agradecimento: “És muito melhor quando fazes as pessoas à tua volta melhores”.

André Carrilho / OBSERVADOR

O concerto aproximava-se do fim e, depois da já referida festa afro com Plutonio em “Iminente”, o público voltava a dar sinais de entusiasmo: “E salta Papi, e salta Papi, olé, olé”, gritou-se. E o rapper saltou. “Chegámos à reta final”, avisava Papillon. O último fôlego foi com uns quantos “obrigado” e “muito obrigado” repetidos com a banda a acompanhar o agradecimento nos instrumentos, em tom dançável, mas a última canção a ser apresentada era precisamente o tema que encerra o disco, “Metamorfose Fase II”, talvez a melhor carta de apresentação de Papillon enquanto rapper (há também o Papillon cantor, o Papillon hedonista e festivo, o Papillon vulnerável de “Imagina”…), com impressionantes variações de ritmo e intensidade na dicção dos versos.

Restava a última mensagem de um concerto que por certo será recordado por rapper e fãs nos próximos anos: “Muito, muito, mas muito obrigado, Alive. O meu nome é Papillon, foi um prazer estar aqui. Espero ver-vos em breve.” A julgar pelo concerto, há uma boa probabilidade de isso acontecer. Até porque foi difícil não recordar a atuação de Slow J no Super Bock Super Rock no ano passado, com vários pontos em comum com a de Papillon esta quinta-feira no NOS Alive. Na altura, esse concerto confirmou o “salto” de João Batista Coelho para a primeira liga do hip hop nacional (talvez da música portuguesa, também). Se aconteceu assim com Slow J em 2017, porque não acontecerá com Papillon em 2018?

Um Khalid agridoce

Se Papillon confirmou-se como artista de corpo inteiro e já a caminho da consolidação no NOS Alive, o norte-americano Khalid Donnel Robinson deixou uma imagem algo pálida daquilo que dele se esperava, face à grande legião de fãs que já possui nos Estados Unidos da América e na Europa. Na estreia em palcos portugueses, o cantor de 20 anos teve muito público, tanto que este ultrapassou a lotação da tenda do palco Sagres, ficando a ver o concerto (iniciado às 23h) fora da tenda e apertando-se mesmo para poder ficar nas redondezas.

Atuando com banda minimalista (teclista, baterista, guitarrista) mas utilizando também excertos pré-gravados no espetáculo, Khalid fez-se também acompanhar de algumas bailarinas, que iam executando coreografias de forma intermitente, consoante a música o pedia mais ou menos.

13 fotos

Autor de um R&B sensual com marcadas influências pop, Khalid é um cantor de grande nível e isso foi percetível durante toda a atuação. Além de cantar, também é bastante enérgico, dançando e acompanhando os bailarinos enquanto canta. No entanto, apesar do interessante esboço que é o álbum de estreia American Teen, as canções de Khalid perdem bastante com a recriação ao vivo e com a menor maquilhagem que é a (boa) produção.

O público pareceu não se importar muito: composto por muitos jovens que se encavalitavam aos ombros dos amigos para ver melhor Khalid e que berravam assim que ouviam os primeiros acordes de “Saved” (talvez a canção mais consistente e apurada de Khalid), “Young Dumb & Broke” e “Silence” (esta última, um grande êxito que Khalid escreveu com Marshmello).

O concerto deixou um sabor agridoce. Por um lado, houve um entusiasmo tão notório do público que não é difícil prever que Khalid não voltará a atuar num palco secundário de um festival português novamente. Com a edição do segundo álbum, que deverá acontecer no próximo ano, dará um salto natural e que hoje já não se estranharia para os palcos principais dos festivais.

Ficou também a impressão que, quando Khalid faz uma boa canção, faz mesmo uma boa canção, num flirt entre o R&B eletrónico e a pop comercial que parece poder ajudar à reinvenção (para melhor) da pop atual. Lorde, outra cantora bastante jovem, também o tem feito à sua maneira, estando já uns passos adiante de Khalid. No entanto, percebe-se melhor ao vivo que falta ainda alguma substância e identidade às canções de Khalid, por ora ainda excessivamente indistintas face às de outros jovens compositores e cantores de pop eletrónica e R&B. Nem todos, é certo, têm a voz ou o talento de Khalid para encontrar o refrão certo, ou ainda a margem de evolução que este tem aos 20 anos, mas é preciso mais do que isso para garantir que a devoção que uma legião de fãs tão juvenil lhe tem é mais sólida do que efémera. Já dizia o tio do Homem-Aranha Peter Parker (e seguramente alguns outros antes dele): grande poder acarreta grande responsabilidade.

Sampha deixou água na boca para o futuro

Imagem bem diferente deu Sampha, músico britânico que pela voz poderia assemelhar-se ao registo de Khalid mas que está a encontrar e inventar caminhos novos nos corredores da música pop. A idade — tem 29 anos, quase mais uma década de vida do que Khalid — ajuda a explicar que Sampha não cante sobre ser “novo, burro e falido” mas ainda assim “ter amor para dar”. Há no entanto no britânico uma procura de novas fórmulas sonoras dentro do novo R&B e da canção pop que a idade não explica por inteiro. Até porque essa procura era já notória antes de Process, o disco de estreia de Sampha. Era visível, por exemplo nas colaborações que o músico, compositor e cantor encetou antes de se lançar em definitivo a solo.

Antes de se prosseguir com os elogios, há que notar que essa procura ainda não encontrou inteiramente um rumo sólido. Pelo menos discográfico. Process, o álbum que valeu a Sampha o importante prémio Mercury, ainda não é o objeto artístico que fez de Sampha uma certeza, carece de uma coesão e um equilíbrio que Sampha não conseguiu encontrar. No concerto desta madrugada (começou a atuar à 1h30) no palco Sagres do NOS Alive, contudo, o músico deixou sinais prometedores de que pode estar prestes a cumprir todo o seu potencial.

Misturando a música de dança (é notória a influência de alguns ritmos da tradição da música eletrónica do Reino Unido no seu registo) com o R&B e a soul confessional, Sampha aprimora cada vez mais uma fórmula só sua. É a mesma que lhe permite transformar o palco Sagres numa discoteca singela com o seu uso elaborado das percussões (em “Without”, cria-se uma espécie de eletrónica tribal com quatro músicos, um deles Sampha e outro o seu magnífico baterista, a ocuparem-se das percussões em simultâneo) para logo a seguir aplicar as melhores lições da composição clássica ao seu R&B confessional, com “(No One Know Me) Like the Piano” a impressionar ainda mais ao vivo do que na versão estúdio. É uma grande canção, que só pode ser escrita por alguém com um invulgar talento. Se a transição e o equilíbrio entre os diferentes registos de Sampha ainda não funciona por completo em disco, não será tão arriscado quanto isso prever que está a caminho de compor uma coleção de canções ímpar.

O público dançava e emocionava-se (erguendo os telemóveis e filmando os momentos mais íntimos — é a forma de emoção mais contemporânea e cosmopolita que se observa em festivais) e Sampha registava isso com agrado: “Vocês são um público tão bom, obrigado”, apontou o cantor depois de cantar “Kora Sings”. Ele que surgiu em palco vestindo integralmente laranja, num fato também usado pelo seu baterista que parecia a vestimenta de alguém que se encontra encarcerado (o rapper J. Cole também já usara uma indumentária parecida, na digressão de apresentação do álbum 4 Your Eyez Only).

“Tem sido um prazer absoluto estar aqui”, atirou ainda o músico, já o concerto ia adiantado. Ao nosso lado, quem já o vira no festival NOS Primavera Sound — que assinalou a estreia de Sampha em Portugal — garantia que este concerto estava a ser muito melhor e que se notava uma maturidade crescente no músico. Estava tudo certo. Uns metros ao lado, havia quem aproveitasse antes o groove do hip hop ao mesmo templo samplado (portanto, reinventado) e tocado com instrumentos “tradicionais” dos portugueses Orelha Negra para prosseguir a sua noite. E, a julgar pelo que ali ouvimos durante alguns (curtos) minutos, a escolha era tudo menos censurável.

No NOS Alive, esta quinta-feira, dia 12 de junho, além dos concertos do palco NOS e dos concertos acima referidos, decorreram ainda atuações de Friendly Fires, Wolf Alice, Jain, Blasted Mechanism, Juana Molina, Vermú, D’Alva, Sophie, PAUS + Holly Hood, Bibiana Petek, Shaka Lion, António Zambujo, Pedro Seabra, DJ Glue com SP Deville, Here’s Johnny com DJ Glue, Fumaxa com Here’s Johnny, SP Deville com Dead End e Fumaxa com Dead End.