Como qualquer outro método, este também tem falhas, mas mesmo tendo em conta a margem de erro, é dos mais acertados que há por aí para testar quanto vale uma canção. Se por acaso um dia tiverem de cumprir a função de mete-discos, seja numa festa das coisas noturnas, num dancing de casório ou num baile da paróquia, experimentem passar uma qualquer de Aretha.

“Think”, por exemplo, faz 50 anos neste 2018. 50 anos. Mas de cada vez que toca, o efeito que provoca parece sempre novo. Não é conversa fácil agora que é a hora da morte. É um facto. Seja a primeira vez que nos passa pelos ouvidos ou uma já na casa das dezenas, o resultado é sempre o mesmo. Quem a ouve sente-se livre.

E é essa a grande herança de Aretha Franklin. Uma voz que ultrapassa a indiferença e instala a emoção. Sempre. Uma voz que é feita de sentimento. Caramba, tudo isto soa a lamechice da grossa, mas no caso da Aretha era apenas a verdade. “Apenas” porque parece tão simples. E era simples, já que a cantora nunca soube fazer mais nada a não ser desfazer-se aos pés de uma canção, entregar-lhe a alma e o corpo, ajoelhar-se perante a grandiosidade de cada tema que interpretava.

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A soul é feita de vida, de experiência, de trabalho, de quedas e de recomeços, de paixões e suas tragédias. É por tudo isto que não há estilo musical mais intenso que este. E a intensidade na soul é sempre medida na “escala Aretha”. E Aretha, hoje como sempre, mexe com quem lhe dá ouvidos. Mais do que qualquer outra voz do género, Aretha rouba o tempo e molda-o de acordo com a vontade que deixou em cada gravação. E isto é lei independentemente da pessoa que está no meio da dança: mais rocker, mais electro, mais urbanodepressivo ou mais dado às alegrias da pop. Não interessa. Aretha canta e tudo o resto perde importância. Se não é este o maior legado que nos podia ter deixado.

Aretha Franklin foi coroada rainha da soul em meados de sessentas. Estava na casa dos 20 quando subiu ao trono e parece claro que não tem nem nunca terá sucessora. A regente era única, o reino já não é bem o mesmo e os súbditos estão noutra sintonia. O título foi-lhe entregue porque Aretha tinha as duas coisas necessárias para o receber: a forma e o conteúdo. A técnica era notável. Aquela voz era, como em tempo disse Keith Richards, o “maior e mais forte instrumento natural” que alguma vez se ouviu. Ou como explicou Tom Jones numa ocasião esclarecedora, Aretha foi a única que em palco o conseguiu calar, a única que lhe ultrapassou a força das cordas vocais. E note-se que Tom Jones sempre foi um rapaz valente, bastante valente.

À técnica juntava um entendimento da soul não único mas raro. A soul, enquanto etiqueta, nasceu do cruzamento entre o gospel das igrejas, a pop das rádios, os blues do sul dos EUA e o R&B das noites suadas. A soul, enquanto quase-fé de autoridade própria, é a vida real transformada em obra criativa maior. Franklin, apelido de pastor batista, herdado por uma voz mágica que na pós adolescência já era maior que todas as outras vozes. Que sabia de onde vinha e para onde ia. Sabia, além disso, o poder que tinha. A voz de Aretha não era forte apenas nas questões mais óbvias. A voz de Aretha chegava onde as outras não chegavam.

Se fosse gospel, ela rezava. Se fosse engate, ela conquistava. Se fosse para mudar o mundo, ela mudava. Mudava naqueles três minutos, nem que fosse isso, e deixava uma semente de mudança em quem a ouvia. Ficava lá qualquer coisa. Quem ouve “Think” na pista de dança fica preso a isso. Naquele momento, nada mais existe.

Tocava piano e cantava, tudo ao mesmo tempo e sem perder classe em nenhuma das funções. E estudemos a história do cançonetismo para tentar perceber quantas pessoas que se entregam desta maneira a uma canção conseguem fazê-lo quando tocam e cantam ao mesmo tempo. “Ah, mas isso é treino”. Então o leitor que assim pensou que treine. Que treine e que daqui a uns anos veja onde chegou.

Aretha não escreveu “I Never Loved a Man (The Way I Love You)”, mas aquela história de um amor diabólico não é de mais ninguém. Aretha não escreveu “Respect”, mas se Otis Redding pudesse, ele apareceria hoje para explicar como a senhora Franklin lhe roubou todos e cada um dos versos. Aretha não escreveu “(You Make Me Feel Like A) Natural Woman”, mas quantos pensam nisso quando ouvem aquele refrão impossível de repetir? Também foi autora, mas Aretha Franklin será sempre reconhecida como intérprete. E isto não é pouco. Isto é tudo. Pegar numa canção, escrita para ela ou não, e torná-la coisa sua. Manipular as subidas e descidas a partir das entranhas, entregar cada lágrima, cada gota de suor, como se o mundo estivesse para acabar e mais nada restasse a não ser cantar.

De tal maneira assim foi que durante uns bons 15 anos, entre as décadas de 60 e 70, no cruzamento entre as eras das editoras Columbia e Atlantic, qualquer canção gravada por Aretha Franklin transformava-se de imediato num clássico da soul, num standard do género. Como se Aretha andasse entre nós desde sempre. Como se ela soubesse que haveria de ser sempre assim, mesmo depois de morrer. Era de tal forma gigante que conquistou outro título: o de diva. Todas as divas que lhe seguiram os passos, de Whitney a Mariah a Beyoncé, todas sem exceção tomaram Aretha como exemplo.

Porque ela podia. Ela mandava. Ela controlava, mesmo que no seu íntimo nem sempre fosse assim. Mesmo que lutasse contra demónios e medos e pânicos. E ainda bem que o fazia. Ainda bem para nós. Tomou os males pelo focinho e deu-lhes garganta. Uma garganta tão doce quanto arranhada, tão forrada a mel como cozida em gravilha. Dependia do dia, da hora, da vontade, do estado de espírito, do ódio ou do amor. Aretha era mestre na arte do tempero. Cozia as canções num refogado malandro e depois escolhia o ponto da fervura consoante o calor ou o frio do calendário.

Era assim nas canções e era assim na vida, nas conversas, nos olhares, no trato, na impetuosidade com que se atirava às relações. Era feitio, claro que era, mas com o que viveu e o que ganhou, Aretha podia ter o feitio que quisesse. Não era perfeita, longe disso, será sequer possível atingir essa coisa da “perfeição”? Nenhuma pessoa consegue, umas quantas canções conseguem-no sempre. Aretha Franklin era a voz perfeita nas canções perfeitas. Só isso importa, tudo o resto é detalhe. E esta verdade maior ela sabia-a bem. A nós resta-nos ouvi-la, invejar-lhe a voz e a garimpa e continuar a perguntar, sempre que o DJ a fizer rodar: “Como é que ela conseguia?”. Só ela sabia e esse mistério para nós vai ser sempre um encanto.