Quem ainda teve a fortuna de ir ao cinema antes da era dos multiplexes, em especial nos anos 70 e 80, e corria todas as capelinhas de Lisboa, das salas monumentais às de “autor”, dos cinemas de bairro de classe média aos populares e de reposição, decerto sentirá o mesmo que eu quando for ver  “Mandy”, de Pan Cosmatos, um derivado – mas com tudo no sítio e a exibir com orgulho as devidas referências na lapela -, dos “midnight movies” que nesses tempos aterravam com regularidade nas salas da capital. “Mandy” seria o filme ideal para apreciar nesse singular templo alfacinha da série B fantástica, de terror, ficção científica e “exploitation” chamado Xenon, ali aos Restauradores, de preferência numa sessão da meia-noite. E a seguir, ser discutido com entusiasmo, entre “imperiais” e “pregos”, numa cervejaria aberta a desoras.

[Veja o “trailer” de “Mandy”]

A alucinada, “pedrada” e ensanguentada fita de Cosmatos passa-se nos anos 80. Mas remete, na letra e no espírito, nos temas e nas atmosferas, à década de 70, filiando-se de chapa num subgénero híbrido então popular, que juntava elementos do “biker movie”, do “revenge movie”, do filme de terror ligado ao oculto e do filme “psicadélico”, de que são exemplos “Werewolves on Wheels” (1971), de Michel Levesque, “Blood Freak” (1972), de Brad F. Ginter ou, acima de todos, “Psychomania” (1971), de Don Sharp. Pan Cosmatos pegou nisto tudo, acrescentou-lhe um cheirinho de “slasher movie”, um par de sequências animadas ao estilo “Métal Hurlant”, encomendou uma banda sonora roncante e pré-apocalíptica ao malogrado Jóhann Jóhannsson (foi a última que ele compôs, e a fita é-lhe dedicada) e convocou Nicolas Cage para interpretar o herói. Delírio garantido.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

[Veja a entrevista com Nicolas Cage, Panos Cosmatos e Linus Roache]

A história conta-se de uma penada, depois da abertura ao som de uma velha canção dos King Crimson, para que se perceba bem em que território sonoro e visual da memória da cultura popular é que “Mandy” se situa. Nicolas Cage é Red Miller, um homem que trabalha na indústria da madeira e vive com a mulher, a etérea Mandy (Andrea Riseborough), numa casa no meio dos bosques, algures no interior profundo dos EUA. Red passa o dia a cortar árvores, Mandy a ler livros de “fantasy” ou ao balcão da loja local. Um dia, Jeremiah Sand (Linus Roache), um antigo cantor de “folk” psicadélico reconvertido em líder de seita maligna, põe os olhos em Mandy, fica enfeitiçado e convoca dos fundos dos infernos um quarteto de “bikers” demoníacos para a raptarem. Mas como são burros, ou então nunca viram filmes destes, cometem o erro de deixar o marido vivo.

[Veja a entrevista com Andrea Riseborough]

Louco de dor e de fúria, Red vai armar-se para matar os demónios “bikers” e os membros da seita, lançando mão de uma besta para caça grossa e forjando uma arma com uma lâmina tamanho-família que faria debandar um pelotão de “orcs”. Cosmatos, que já tinha a fita em banho-maria de atmosfera semi-irreal, mergulha-a num espesso caldo visual e musical de pesadelo alucinatório. E depois é um vê-se-te-avias de acção comandada por Nicolas Cage, aqui justificadamente “over the top” a vingar-se dos representantes do mafarrico e seus adoradores, com a mudança da interpretação febricitante presa na sexta velocidade e o aspecto de quem acaba de comer uma omelete com recheio reforçado de cogumelos alucinógenos e tomar um duche de cabidela.

[Ouça um excerto da banda sonora de Jóhann Jóhannsson]

Depois de despachar os quatro demónios “bikers” a golpes de besta, com fogo e ao murro e ao pontapé, arranjando tempo pelo meio para fazer uma linha de cocaína após ter furado um deles de lado a lado, e fumar uma cigarrada acesa na cabeça decapitada e em chamas de outro, Red desembaraça-se dos sequazes de carne e osso de Sand no melhor estilo “Massacre no Texas”. E para acabar em grande e com direito a ovação, mostra ao líder da seita, que se revela um cobarde choramingas quando percebe que já não tem nem capangas nem apoio sobrenatural, que ninguém bate um lenhador no que respeita a usar as mãos de forma criativa para fins de vingança tresloucada.

[Veja uma sequência de “Mandy”]

No velho Xenon, numa daquelas coloridas sessões dos anos 80, teria havido sonoros aplausos e invectivas entusiásticas para o atarefado Red Miller. “Mandy” não é o artigo genuíno, claro. Esse é irrepetível. Mas esta fita de Pan Cosmatos é a mais aplicada, sincera, febril e desvairada contrafacção possível de um desses extintos “midnight movies” de terror que empolgaram e marcaram uma geração cinéfila omnívora, antes do advento dos multiplexes e da morte dos cinemas tradicionais.