Sábado à noite participou na Famous Fest, ao lado dos portugueses César Mourão e Filipe Melo — uma noite de humor no palco do Cinema Capitólio, em Lisboa. Este domingo, ao fim da tarde, vai estar no FOLIO (Festival Literário Internacional de Óbidos) para uma sessão do projeto de fomento à leitura “Você é o Que Lê” — ao lado de Matilde Campilho, Xico Sá e Maria Ribeiro. Conhecido em Portugal como autor e ator da série humorística do YouTube Porta dos Fundos, Gregório Duvivier, de 32 anos, considera que o humor português é subtil e sofisticado. Diz que grupos “historicamente oprimidos” não devem ser alvo fácil de piadas. E entende que a democracia no Brasil vive sob a ameaça do polémico Jair Bolsonaro, candidato da extrema-direita às eleições presidenciais de 7 de outubro. Foi por aí que começou a entrevista ao Observador, no sábado à tarde.

Antes desta entrevista esteve no Largo de Camões para participar numa manifestação contra Bolsonaro. Porquê?
Hoje é dia de protesto em todo o Brasil. Vim para Lisboa com a minha mulher, Giovanna Nader, e ela disse que seria uma pena não estarmos a participar nas manifestações. Todas as mulheres estão na rua hoje, é muito importante. Pesquisámos e descobrirmos que havia um protesto também em Lisboa e decidimos juntar-nos. Há uma ameaça no Brasil. Embora Bolsonaro tenha aparecido por via legal, na minha opinião não é um sujeito do campo democrático. Ele tem vindo a dizer que não respeita os direitos humanos ou os direitos civis, é a favor da tortura, não acredita no resultado das urnas. Já afirmou que não vai respeitar uma possível derrota, porque não confia no voto eletrónico. Ele é uma ameaça à democracia.

O objetivo das manifestações é demover os eleitores que apoiam Bolsonaro?
Acredito que sim. Quem está a organizar as manifestações são as mulheres e o principal argumento é o machismo. O Brasil tem 52% de mulheres eleitoras. Ele já é mais fraco entre as mulheres, tem aquilo a que os americanos chamam “gender gap”. É gigante a diferença de votos a favor de Bolsonaro entre homens e mulheres, mas há muitas que votam nele, claro.

Como se explica a popularidade de Bolsonaro?
Tem um engenho que falta à esquerda e isso, inclusivamente, está relacionado com o humor. Ele usa recursos humorísticos no discurso. Trabalha muito com “memes”, é eficiente. Chama “fake news” a tudo o que a imprensa faz, ou seja, combate o próprio conceito de imprensa. A “Folha de S. Paulo” descobriu que a ex-mulher dele tinha pedido asilo no Itamaraty [Ministério dos Negócios Estrangeiros], porque recebia ameaças de morte da parte dele. A candidatura de Bolsonaro diz que são “fake news” e que a “Folha” é um jornal comunista. Inacreditável. A esquerda sempre disse o contrário, que a “Folha” era um jornal de direita. Ele consegue voltar qualquer acusação contra ele, dizendo que vem da esquerda, dos comunistas. Ele apresenta-se como vítima.

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De facto, Bolsonaro está à frente nas sondagens.
Porque este discurso funciona muito bem. O Brasil tem um lastro fascista gigantesco. A nossa ditadura militar tinha uma taxa de aprovação muito elevada. Era popular. Nesse sentido, também era engenhosa. Bolsonaro dialoga com essas pessoas, com aqueles que hoje pedem o regresso da ditadura militar. A democracia no Brasil não é um conceito tão popular como nos países que são democráticos há mais tempo. Mesmo em Portugal, que tem uma democracia relativamente recente, não conheço políticos fortes ou relevantes que ponham em causa a democracia ou que peçam o regresso do Estado Novo.

Em quem vai votar no dia 7 de outubro?
Em princípio, em Guilherme Boulos [do Partido Socialismo e Liberdade]. É um sujeito que está mais à esquerda, com propostas com as quais me identifico. Ele fala, por exemplo, da legalização do aborto. No Brasil, é um tabu gigante, nem o PT fala disso. Ele fala de Reforma Agrária, de coisas que o Brasil até hoje não fez.

Disse que Bolsonaro usa o humor como arma de campanha. O humor também tem sido muito usado contra ele?
Sem dúvida, o humor e as artes, em geral. Tem havido uma união muito forte de artistas de vários campos, artistas que tradicionalmente não se manifestavam. A cantora Anitta não costuma falar sobre política e agora já veio falar contra Bolsonaro. Em 2014, o Brasil ficou partido ao meio, entre PT e PSDB [Partido da Social-Democracia Brasileira, do atual presidente, Michel Temer]. Hoje, pessoas que nessa altura estavam em campos opostos também se juntam contra Bolsonaro. Mas ele continua muito popular, vai ter certamente uma votação alta. Irá à segunda volta e pode perder por pouco. Mesmo que perca, o “bolsonarismo” já venceu.

O seu programa de humor na HBO Brasil, “Greg News”, tem criticado de forma idêntica os vários candidatos presidenciais?
Durante este período, o programa parou, para não termos uma agenda política. Estivemos no ar até começar a campanha eleitoral. Neste momento, a nossa agenda seria não eleger Bolsonaro e o programa ficaria repetitivo.

A crítica insistente pode ter o efeito contrário?
Pode. Nos EUA, os comediantes não conseguiram nada contra Trump durante a campanha eleitoral. O humor não é uma arma tão poderosa assim, acho que nem é uma arma. Ricardo Araújo Pereira, que admiro muito, que considero o maior humorista vivo da língua portuguesa, diz uma coisa curiosa. Vou estragar a metáfora, porque a formulação dele é certamente melhor do que a minha. Ele diz: uma piada sobre determinado assunto não tem influência sobre o assunto, assim como o meteorologista não tem influência sobre o estado do tempo. O facto de ele dizer que amanhã faz sol não muda nada, o sol está-se a cagar para a previsão do meteorologista. Os políticos são um pouco assim. Fazemos humor e ajudamos as pessoas a suportar ou a entender o que está a acontecer, mas a opinião das pessoas não muda. Não tenho essa pretensão.

Para que serve o humor?
Para suportar a morte e a desgraça, entre outras coisas.

Pode servir para nos fazer pensar?
Não nego isso. Não acho que o humor seja algo para a pessoa esquecer os problemas, mas para pensar sobre eles de outra forma. O humorista, tal como a criança ou o poeta, e o louco e o bêbado, traz um olhar diferente e fresco sobre a realidade. A criança olha para o mundo pela primeira vez e leva-nos também a olhar como se fosse a nossa primeira vez. É um olhar menos viciado, que ajuda a entender, porque é um olhar leigo, livre. O humorista é essa pessoa: joga sobre o mundo um olhar livre de vícios, um olhar fresco. Por isso, o humor com que me identifico é eficiente contra os preconceitos, num sentido vasto. É político nesse sentido. Tem um olhar livre de todos os vieses com que olhamos o mundo.

É verdade que os textos do “Greg News” são revistos por juristas para que o canal não seja processado pelo público?
É verdade.

Sente isso como um condicionamento?
Condicionamento no sentido de censura? Não sinto. Sou a favor da liberdade total de expressão, mas acho que o humor está sujeito à legislação. O humorista não tem o direito de mentir. Assim como a imprensa. Também sou a favor da liberdade total para a imprensa, mas existe um limite, que é a calúnia, a invenção.

Mas um “sketch” pode ser totalmente ficcional.
Pode, mas no “Greg News” trabalhamos com humor baseado em factos. Não significa que não contemos piadas, mas não contamos mentiras. Ainda acredito em factos, talvez seja obsoleto hoje em dia, mas acredito. Acho que podemos fazer humor com factos. A verdade é muitas vezes subjetiva, mas há coisas que acontecem e coisas que não acontecem. Ainda acredito na realidade. A realidade é aquilo que não muda, caso não acreditemos. A realidade não depende de alguém acreditar ou não e a ficção depende. Faço humor com a realidade. O aconselhamento jurídico vai muito nesse sentido: “Olhe, não diga que ele está condenado por corrupção, diga que ele está acusado, porque o julgamento ainda não terminou”. Ou seja, não me dizem para bater mais no outro candidato, porque já batemos muito neste. Temos liberdade editorial completa e isso, para mim, é condição “sine qua non”.

Há alguns uns anos, teve um problema com um “sketch” sobre uma mulher transgénero. Chegou a pedir desculpas públicas. Que limites tem o seu humor?
De um modo geral, e não quer dizer que seja um limite, no sentido de barreira, evito bater nos grupos historicamente oprimidos. Não é proibido ir além, mas, pessoalmente, como humorista, evito. No Brasil é certamente mais claro do que em Portugal, porque temos um país cindido entre, por exemplo, brancos e negros. Aa desigualdade racial é tremenda. No dia em que a situação estiver melhor, não vejo problema nenhum em fazer piadas com negros. Hoje a realidade é tão dolorosa para muitas destas pessoas que me incomoda fazer piadas sobre negros. Não me sinto bem, sinto-me a bater nos mesmo grupos em que a polícia bate. Não gosto de estar no lugar do polícia. Acho que o humor tem mais a ver com passar a mão pela bunda do polícia do que em dar um chuto num mendigo. O humor é sobre alguém que está armado.

[rábula da Porta dos Fundos, em 2015, escrita por Duvivier e pela qual pediu desculpas]

Que humoristas portugueses admira, além de Ricardo Araújo Pereira?
Gosto muito do humor português, sempre gostei. Comecei com os Gato Fedorento, quando era ainda adolescente. Via em cassetes VHS, pedia a quem viesse a Portugal para me levar as gravações. Foi algo que me marcou e certamente me influenciou, inclusive a fazer a Porta dos Fundos. Gosto muito do César Mourão, um excelente improvisador, um génio. O Bruno Nogueira, muito talentoso. O Filipe Melo, que não é propriamente o humor, mas é talentosíssimo e vai estar comigo no palco aqui em Lisboa. E o Herman José, claro, de outra geração, um sujeito muito à frente do tempo. Ainda hoje me rio dele no Instagram, acho que usa as redes sociais muito bem, com muita graça.

Quais sãos as diferenças entre o humor português e o brasileiro?
O humor em Portugal tem algo vanguardista, sempre achei isso, desde os Gato Fedorento. Faziam na televisão, antes do You Tube, algo muito parecido com o que mais tarde fizemos na Porta dos Fundos. Bruno Aleixo a mesma coisa: humor no limite do absurdo, com um fantoche. Existe um caráter experimental no humor português. O Bruno Nogueira trabalha no limite da ficção, entrou num “reality show” de ficção. De um modo geral, as pessoas levam o humor a sério, aqui em Portugal. Miguel Esteves Cardoso é outro nome de que gosto muito, na crónica. O público e os humoristas portugueses levam o humor muito a sério. No Brasil, faz-se humor a rir, aqui faz-se humor sério, literalmente. A cara é séria.

É um humor mais irónico?
Isso. Muitos brasileiros não entendem as piadas dos portugueses. Por exemplo, você pergunta: “Onde fica a rua tal?” O português responde: “Está a ver aquela rua? Não é aquela, é a próxima.” O brasileiro acha que é um problema cognitivo do português, mas ele é que não entendeu que era uma piada. O brasileiro sublinha a piada, ri e diz “era brincadeira”. O humor português é mais subtil e irónico, menos carregado nas tintas.

Falemos do projeto “Você é o Que Lê”, que vai estar no Festival Literário de Óbidos. Como é que se envolveu nesta ideia?
Quem me chamou para o projeto foi uma produtora baiana, Evelyne Lessa, que queria levar as pessoas às livrarias e bibliotecas, mas através de eventos. O Brasil lê muito pouco. Se não me engano, só metade da população lê um livro por ano. Temos 100 milhões de leitores esporádicos. O brasileiro não gosta muito de ler, mas gosta de eventos, adora ouvir artistas a falar, gosta de encontrar as pessoas. E esta é uma ideia muito boa: transformar a literatura num evento. As pessoas vão, ouvem falar de livros e depois vão mesmo ler. No fim, perguntam qual o livro de que falámos ou aparecem nas redes sociais a pedir informações. Vemos que a partir destes eventos há mais pessoas interessadas em ler, porque percebem que a leitura muda a nossa relação com o mundo. Um problema do Brasil, um problema central, talvez seja a interpretação de texto. A questão Bolsonaro tem muito a ver com interpretação. As pessoas leem as notícias e não entendem, não conseguem descodificar a mensagem.

Qual é o formato de “Você é o Que Lê”?
Somos três com um mediador. Em Óbidos, será com [a escritora portuguesa] Matilde Campilho. No Brasil já convidámos o cronista Antonio Prata, o Luís Fernando Veríssimo, um monte de gente. Quando fomos ao interior de Pernambuco, falámos muito dos autores nordestinos. Não falamos só de livros, mas também da relação dos livros com o mundo de hoje. Sobre, por exemplo, qual seria o melhor livro para falar sobre a situação do Bolsonaro.

E qual seria?
Muitos. Mas, por exemplo, “Como Curar Um Fanático”, de Amos Oz [“Contra o Fanatismo”, na tradução portuguesa]. Ou então, para entender o Brasil, “Viva o Povo Brasileiro”, um romance de João Ubaldo Ribeiro que fala da relação entre o poder e o povo, que sempre foi uma relação de conflito. O problema Bolsonaro é também um problema de poder “versus” povo, no sentido em que as instâncias de poder estão do lado dele, a elite financeira e os militares, enquanto a imensa maioria do povo estava com Lula e agora está com o candidato Haddad. Neste sentido, estamos também a falar de uma luta de classes.