Artigo publicado originalmente a 26 de outubro de 2018 e republicado por ocasião dos 25 anos do combate entre George Foreman e Michael Moorer, em que o primeiro se tornou o mais velho campeão mundial de pesos pesados da história, aos 45 anos

Aos 19 anos, a grande maioria das pessoas anda à procura do sentido da vida. Alguns, saíram de casa dos pais há pouco tempo; outros, ainda lá vivem e não têm grandes intenções de sair nos próximos anos. São os últimos anos do ensino secundário, os primeiros da universidade – ou então os últimos anos de adolescência e os primeiros a trabalhar. A verdade é que, aos 19 anos, a grande maioria das pessoas ainda não sabe muito bem o que anda por aqui a fazer. E depois existem os outros: aqueles que, aos 19 anos, andam a ganhar medalhas de ouro olímpicas sem sequer serem profissionais na modalidade que praticam.

A 26 de outubro de 1968, há 50 anos, George Foreman bateu o soviético Jonas Čepulis na final de pesos pesados dos Jogos Olímpicos do México. Com apenas 19 anos e ainda amador, o atleta norte-americano tornava-se campeão olímpico de boxe durante uns Jogos marcadamente políticos: decorreram durante as manifestações do movimento estudantil mexicano, inspirado pelo Maio de 68 em Paris, foram os primeiros a acontecer na América Latina, os primeiros no país de língua espanhola e ainda os primeiros num país em desenvolvimento. Foi também durante os Jogos Olímpicos do México que Tommie Smith e John Carlos, atletas norte-americanos, levantaram o punho com luvas pretas no pódio dos 400 metros enquanto tocava o hino dos Estados Unidos, em apoio ao movimento pelos direitos civis no país.

George Foreman fez Jonas Cepulis sangrar da face logo no primeiro round e no início do segundo o árbitro do combate decidiu interromper para um standing eight count – uma contagem de oito segundos para determinar se o pugilista está em condições de continuar. Não estava. Em menos de um round e meio, Foreman venceu Cepulis e tornou-se campeão olímpico de pesos pesados. E enquanto Tommie Smith e John Carlos tomavam posições políticas que levaram o Comité Olímpico Internacional a bani-los de forma permanente, George Foreman, negro nascido nos Estados Unidos quando a segregação ainda era uma coisa do quotidiano, abanava uma pequena bandeira norte-americana dentro do ringue para celebrar a vitória.

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Naquele momento, tal como contou anos mais tarde, o pensamento de George Foreman era só um: como é que eu vim aqui parar? Nascido em 1949 na cidade de Marshall, no Texas, cresceu no bairro problemático de Fifth Ward, perto de Houston. O pai biológico, Leroy Moorehead, abandonou-o, assim como à mãe e aos seis irmãos, quando o atleta era ainda uma criança. A mãe casou anos depois com J. D. Foreman, o homem que se assumiu como figura parental da família e que George começou a tratar por pai. Desistiu da escola com 15 anos e, por assunção própria, era um “bandido”. Andou com más companhias, juntou-se a gangues e só não integrou por completo o mundo do crime porque o padrasto, ciente de que a história tinha tudo para ter um final infeliz, o obrigou a integrar os Job Corps – o programa do Governo dos Estados Unidos que oferece educação gratuita e cursos vocacionais a rapazes e raparigas entre os 16 e os 24 anos.

Em 1974, no Zaire, no combate histórico com Muhammad Ali conhecido como Rumble in the Jungle

Mudou-se para Pleasanton, na Califórnia, para uma das residências dos Job Corps. Nesta altura, era um grande fã de futebol americano no geral e de Jim Brown, jogador dos Cleveland Browns, em particular. Um dos monitores do curso que frequentava começou a introduzi-lo ao boxe, a treiná-lo para gastar alguma da energia acumulada que não conseguia direcionar e a aproveitar as capacidades que tinha adquirido durante as rixas de rua em Houston. O monitor apresentou-o a um amigo de infância, Doc Broaddus, um conhecido treinador de boxe. Doc percebeu que Foreman tinha algo mais do que experiência de lutas de rua – tinha um talento inato e ainda cru para o pugilismo. Treinou-o insistentemente, convenceu-o a aventurar-se em torneios de amadores e, em 1967, a fazer os testes para a equipa que iria representar os Estados Unidos nos Jogos Olímpicos do ano seguinte.

Antes dos Jogos, tinha um registo de 16 vitórias e quatro derrotas enquanto amador. Tornou-se profissional pouco tempo depois de ganhar a medalha de ouro no México e apontou como único objetivo a conquista do título mundial de pesos pesados. Em 1971, depois de dois anos passados a fazer combate atrás de combate para ir subindo no ranking e chegar a oportunidades de defrontar os campeões em título, o registo era bastante fácil de interpretar: 32 vitórias em 32 combates, 29 por KO. No final do ano, era o principal candidato ao título tanto na World Boxing Association como no World Boxing Council.

Em 1973, Joe Frazier era o incontestado campeão do mundo de pesos pesados. Já tinha defendido o título por quatro vezes, incluindo com Muhammad Ali, e o extraordinário pico de forma em que se apresentava colocava-o como óbvio favorito contra George Foreman. O Sunshine Showdown, o nome dado ao combate, teve lugar em Kingston, na Jamaica, e Foreman dominou por completo. Em duas rondas, Joe Frazier ficou tombado no ringue por seis vezes e já não tinha discernimento para fugir às investidas do adversário – ainda que se tenha levantado das seis vezes, o árbitro acabou por interromper o combate e dar a vitória a George Foreman por KO técnico. Com 24 anos, o miúdo fã de futebol americano que tinha andado pelos gangues de Houston era campeão do mundo de pesos pesados.

Brilhante no ringue, Foreman não impressionou enquanto campeão. Dava poucas entrevistas, era bruto e áspero a falar e nunca soube tornar-se uma celebridade como mais tarde aprendeu com Muhammad Ali. Mas era aparentemente invencível. Durante um ano, defendeu o título várias vezes e chegou ao fenomenal registo de 40-0, 37 por KO. Até à ida ao Zaire, atual República Democrática do Congo.

No verão de 1974, era altura de voltar a defender o título. O opositor, esse, era aquele cujo nome é hoje um sinónimo de boxe: Muhammad Ali. O combate, publicitado como “o maior do século”, foi promovido com o nome The Rumble in the Jungle e atraiu uma atenção mediática como não era habitual para a época — teve mil milhões de telespectadores no mundo inteiro, foi, à data, o programa mais visto de sempre e até foi motivo para um festival de música de três dias, o Zaire 74, onde tocaram James Brown, B. B. King e Bill Withers. Nos primeiros dias no Zaire, Foreman fez um corte profundo acima do olho durante um treino e pediu o adiamento do combate para o mês seguinte. Anos mais tarde, o atleta desabafou que esta foi a maior vantagem de Ali: “Foi o melhor que lhe aconteceu enquanto estivemos em África. Tive de me preparar para o combate sem poder treinar”. Enquanto Foreman passava os dias a tentar perceber como ia preparar-se para a defesa do título fora do ringue, Ali andou pelas ruas do Zaire, a tornar-se uma autêntica celebridade entre a população local e a atirar farpas ao adversário sempre que era possível.

“Rumble in the Jungle”. A noite em que a abelha picou o urso numa fábula no Zaire

No dia D, Muhammad Ali entrou mais rápido, mais forte, mais decidido. Dominou Foreman e desferiu alguns golpes certeiros, mas rapidamente percebeu que esta estratégia o obrigava a mover-se muito mais do que o adversário e, consequentemente, a cansar-se muito mais rápido. No segundo round, refugiou-se junto às cordas, protegeu a cara e atacou Foreman na zona dorsal sempre que pôde; o campeão olímpico respondia com tentativas de golpes superiores, na zona lateral da cabeça, mas era quase impossível lá chegar. As cordas do ringue, muito mais soltas do que era habitual – George Foreman acusou mais tarde Angelo Dundee, treinador de Ali, de ter desapertado antes do combate –, ajudaram Ali a ganhar espaço para fugir às investidas de Foreman e depois agarrá-lo na parte de trás da cabeça, agudizando o cansaço do adversário.

A dada altura, os golpes de George Foreman deixaram de ser racionais ou certeiros e o atleta foi vencido pela fadiga. Ali ficou cada vez mais confiante, fugiu das cordas, penetrou a defesa de Foreman e ao oitavo round desferiu um soco com a mão direita no maxilar de Foreman. O campeão mundial caiu no chão e deixou de ser campeão mundial. KO, vitória de Muhammad Ali. Ali foi o único pugilista a derrotar George Foreman por KO.

“Estava demasiado confiante quando lutei com ele. Tinha vencido pugilistas que o tinham vencido, como o Joe Frazier e o Kenny Norton. Achei que era mais uma vítima para KO, até que ao sétimo round acertei-lhe com força no maxilar, ele agarrou-me na cabeça e segredou-me ao ouvido: ‘É só isso que tens, George?’. Foi aí que percebi que aquilo não ia ser como eu tinha pensado”, contou George Foreman anos depois. O atleta não competiu durante o ano de 1975, depois de perder o título, e não conseguia sentir outra coisa por Muhammad Ali que não rancor e ressentimento. Afundou-se numa depressão, tentou incessantemente perceber o que tinha corrido mal e não conseguia esquecer aquela noite no Zaire. O combate foi inspiração para um livro e para um filme mas, mais do que isso, foi o início de uma amizade. George Foreman e Muhammad Ali eram opostos: um era recatado, o outro adorava ser uma celebridade; um fugia da comunicação social, o outro procurava-a para se promover; um não sabia ser campeão, o outro tinha nascido para sê-lo.

A amizade surgiu fora dos ringues, quando já não existiam rivalidades recalcadas nem motivos para desconfianças. Tornaram-se melhores amigos. Em 2016, quando Ali morreu, depois de 32 anos de uma amizade quase fraterna, George Foreman garantiu: “A minha vida nunca mais vai voltar a estar completa”. Quatro anos antes, por altura do 70.º aniversário de Ali, o pugilista escreveu uma carta onde abriu o livro de memórias e se desdobrou em elogios para com o antigo adversário. “Se pensarmos no Ali como pugilista, nunca vamos entender o que ele realmente foi. A vida que ele viveu fora do ringue, o que ele tinha para dizer, a coragem que ele tinha, é que fazia dele o que ele era: um profeta, um herói, um revolucionário — muito mais do que um pugilista. Chamá-lo pugilista é desvalorizá-lo. Ele só lutava para passar mensagens. Qualquer mensagem que ele tivesse para passar, ele usava o boxe para isso. Esqueçam o boxe, ele foi uma dádiva para o mundo. Acredito que ele foi o melhor, mas esqueçam o boxe – falem do Joe Louis ou de outro qualquer –, eu acredito que ele foi um dos melhores homens que eu conheci”, desabafou o atleta, que acrescentou ainda que o único arrependimento que tinha em relação a Ali era o facto de não o ter cumprimentado depois do combate no Zaire.

O momento em que Michael Moorer caiu e Foreman se tornou campeão do mundo de pesos pesados com 45 anos

George Foreman regressou à competição em 1976 com o objetivo de voltar a enfrentar Ali e recuperar o título mundial. Venceu várias vezes, voltou a subir no ranking e integrou ainda aquele que foi considerado o combate do ano, contra Ron Lyle. No ano seguinte, numa altura em que já estava num pico de forma razoável e tinha acabado de vencer Pedro Agosto por KO na Flórida, Foreman voou até Porto Rico para defrontar Jimmy Young no dia seguinte. O tempo de recuperação foi nulo mas o pugilista garantiu ao treinador que estava em condições de lutar. Foreman foi sempre dominante e ao sétimo round deixou Young em grandes dificuldades mas foi incapaz de desferir um golpe decisivo: a partir daqui, a fadiga voltou a tirar-lhe o discernimento, tal como tinha acontecido contra Ali, e acabou por perder por knockout no round 12.

Depois do combate, no balneário, Foreman desmaiou devido à exaustão e desidratação. Mais tarde, garantiu que teve uma experiência de quase morte, que se sentiu num sítio de “nada e desespero” e percebeu que estava “perto da morte”. Na autobiografia que publicou em 1995, “By George: The Autobiography of George Foreman”, explica que murmurou “não quero saber se isto é a morte, continuo a acreditar que há um Deus” e sentiu uma mão a puxá-lo. Após esta experiência e o susto de saúde, anunciou que iria retirar-se do boxe profissional e dedicar a vida a Deus. Tornou-se pastor e começou a pregar em cerimónias na sua área de residência até se tornar reverendo da Igreja de Nosso Senhor Jesus Cristo, em Houston. Dedicou-se à família, à comunidade, à congregação e fundou um centro para jovens problemáticos – tal como ele tinha sido.

Em 1987, depois de uma década dedicada à religião e com 38 anos, anunciou que ia regressar aos ringues. A saída da reforma tinha dois motivos: o primeiro e principal era a angariação de fundos para o centro de jovens que tinha fundado e onde tinha investido grande parte do dinheiro conquistado no boxe; o segundo era a grande ambição de enfrentar Mike Tyson. Com mais dez anos e 50 quilos desde a última vez que tinha calçado as luvas, enfrentou e venceu em quatro rounds Steve Zouski. Continuou a competir e a vencer, emagreceu, ganhou agilidade e compensou a falta de equilíbrio natural da idade com uma maior consistência que o tornava capaz de lutar durante 12 rounds, algo pouco habitual na primeira fase da carreira.

Por esta altura, George Foreman já era uma celebridade na televisão e emprestava a própria imagem a anúncios de televendas. A amizade com Muhammad Ali tinha-lhe entretanto ensinado que era necessário que as pessoas gostassem dele para que as vitórias dentro do ringue pudessem ser aproveitadas fora dele. A 5 de novembro de 1994, há precisamente 25 anos e depois de outros sete a recuperar posições no ranking e a tornar-se um dos pugilistas mais acarinhados pelo público, chegou o dia do combate tão aguardado. O adversário era Michael Moorer, 19 anos anos mais novo, que tinha acabado de conquistar o título mundial a Evander Holyfield. Em Las Vegas, vestiu os mesmos calções vermelhos do combate com Ali, em 1974. 

Em Londres, a promover um novo design no George Foreman – o topo da sua nova vida bem sucedida de empresário

Foi arrasado nos primeiros rounds. A juventude de Moorer não lhe dava espaço para pensar, ponderar, planear e atacar. Ao décimo round, quase condenado, conseguiu apanhar uma abertura e desferiu vários golpes curtos para depois terminar com um longo, no queixo de Michael Moorer, que abriu o lábio inferior do jovem pugilista e o deixou caído no chão. Vinte anos depois de perder o título mundial para Muhammad Ali, George Foreman reconquistava-o e num instante batia três recordes: tornava-se, aos 45 anos, o pugilista mais velho a ser campeão do mundo de pesos pesados (um registo que Wladimir Klitschko quer agora quebrar); tornava-se, vinte anos depois do combate no Zaire, o pugilista com o maior espaço temporal entre a primeira conquista do título mundial e a reconquista; e a diferença de 19 anos entre os dois tornava-se a maior de sempre em combates pelo campeonato mundial de pesos pesados. Ajoelhou-se junto ao canto, levantou os braços para o céu e agradeceu.

Perdeu o campeonato no combate seguinte, contra Axel Schulz: depois de uma decisão controversa por parte do júri, recusou um segundo combate e a International Boxing Federation retirou-lhe o título. No mesmo ano, depois de afirmar que o segredo para ter regressado aos 38 anos em tão boa forma física era a alimentação saudável, foi convidado pela Salton Inc. para dar o próprio nome a uma nova linha de grelhadores. Em 2009, tinham sido vendidos 100 milhões de unidades do George Foreman Grill.

Anunciou a segunda e definitiva retirada em 1998, aos 49 anos. Atualmente, além de continuar a dar a cara pela marca de grelhadores e de ser uma figura pública relevante – causou polémica em 2016, quando apoiou Donald Trump nas presidenciais norte-americanas –, aparece regularmente na televisão em reality shows ou programas de comentário desportivo. Chegou a lançar o próprio reality em 2008, “Family Foreman”, que seguia a vida de George, da mulher, Joan, e dos doze filhos do ex-pugilista – cinco filhos e sete filhas, em que todos os rapazes se chamam George para “saberem de onde vieram”.

50 anos depois do ouro olímpico na Cidade do México e 25 depois do combate com Moorer, George Foreman é muito mais do que um pugilista. Numa grande entrevista que deu à revista Square Mile após a morte de Muhammad Ali, o ex-campeão do mundo de pesos pesados era descrito como “Átila, o Huno que virou Pai Natal”. E a verdade é que George Foreman ofereceu muito mais ao boxe do que o boxe lhe ofereceu a ele.