Leninegrado, Novembro de 1971. Ainda não é inverno mas já está tudo gelado. Não só física mas também politicamente. Brejnev ocupa o poder e o relativo degelo da era de Khrushchev já acabou há alguns anos. Congelada está também a vida do escritor e jornalista Sergei Dovlatov que, por não alinhar com o regime e não pertencer ao Sindicato dos Escritores Soviéticos, não consegue publicar nada. O mesmo sucede a vários dos seus amigos escritores e poetas, caso de Joseph Brodsky, que até recorre à dobragem de filmes para sobreviver. Dovlatov está separado da mulher, mas tem que ajudar com alguma coisa por causa de Katia, a sua filha pequena. Por isso, aceita escrever banalidades propagandísticas para o jornal de um estaleiro naval, e entrevistar um operário do Metro que também escreve versos para uma revista literária.

[Veja o “trailer” de “Dovlatov”]

Sergei Dovlatov, o protagonista de “Dovlatov”, do realizador russo Alexei German Jr., não é uma personagem ficcional. Nascido em 1941, de mãe arménia e pai judeu russo, trabalhou como guarda prisional e guia turístico, enquanto tentava debalde ser editado. Frustrado e farto das perseguições do KGB, emigrou para os EUA em 1979, onde conseguiu ser publicado na revista “The New Yorker” e ter vários livros editados, assim como na Europa livre. Morreu de ataque cardíaco, em 1990, em Nova Iorque, apenas com 48 anos. Não tendo, cruelmente, sabido que, com a Perestroika e o fim do comunismo na URSS, haveria de ser tornar num dos autores mais lidos e mais queridos do seu país.

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[Veja excertos da conferência de imprensa do filme no Festival de Berlim]

Em “Dovlatov”, Alexei German Jr. acompanha o escritor ao longo de seis dias, e o tema do artista que vê a sua obra bloqueada, proibida e destruída pelo Estado totalitário, através das suas várias instâncias na sociedade, diz-lhe muito. É que German Jr. é filho do ator e realizador Alexei German (1938-2013), autor de filmes como “Dois Dias Sem Guerra” (1977) ou “É Difícil Ser Um Deus” (2013), que foi também vítima da censura comunista. Por exemplo, o seu filme “Trial on the Road”, de 1971, esteve banido durante 15 anos na URSS e só se estreou em 1986, já na era Gorbachev. Mesmo assim, os nomes de várias das pessoas que nele trabalharam e entretanto emigraram para os EUA, foram apagados da ficha técnica.

[Veja uma cena do filme]

Por tudo isto, “Dovlatov” poderia ser um filme crispado, irado, raivoso. Mas não. Enquanto segue o escritor por tertúlias de artistas banidos como ele que bebem vodka, ouvem jazz, recitam poesia e lamentam a sua sorte, no apartamento partilhado por outras famílias em que vive com a mãe, no parque onde se vendem livros de autores ocidentais proibidos, no estaleiro onde vai ser lançado um barco e atores disfarçados de escritores russos famosos vão dizer tiradas patrióticas para um filme de propaganda alusivo, ou ainda na redação da revista literária em que Dovlatov quer ser publicado mas se vê sempre recusado, criticado, cortado, o realizador cultiva um sentido de humor muito russo na sua ironia lacónica e na sua amargura fatalista.

[Veja uma cena do filme]

Sentido de humor que é partilhado por Dovlatov, quando conhece um figurão do “establishment” literário, obcecado pela antiguidade clássica, que lhe propõe escrever a meias, em grego, uma épica passada na Grécia antiga; ou quando convence um informador da polícia de que é um agente do KGB. Acompanhado pelo futuro Prémio Nobel da Literatura Joseph Brodsky, Sergei Dovlatov, interpretado com nobreza melancólica pelo ator sérvio Milan Maric, vai tentando manter a dignidade pessoal e a integridade artística, enquanto resiste às exigências de textos “positivos” e artigos “edificantes” sobre heróis soviéticos e trabalhadores petrolíferos, procura alguém que lhe empreste 20 rublos para comprar uma boneca à filha e vê amigos e conhecidos serem destratados, desprezados ou destruídos pela máquina da cultura oficial e da repressão estatal.

Filmado por Alexei German Jr. com uma câmara que se mantém discreta e elegantemente fluida onde quer que vá, e dispondo de um elenco secundário tão bom como homogéneo, com destaque para Artur Beschastov no papel de Joseph Brodsky, “Dovlatov” é um belo, sóbrio e tristonho filme sobre um escritor que preferiu deixar o seu país a deixar-se humilhar, amarfanhar e esterilizar na sua vida e no seu talento por um regime arbitrário e constrangedor, e sobre a condição do artista na ex-URSS. E, por extensão, em qualquer sociedade totalitária.