O que falta no Porto? O que ameaça a minha vida? Quem defende a legalização da canábis? Quem se recusa a usar o novo acordo ortográfico? Quem tem uma arma em casa? Estas são algumas das muitas perguntas às quais 100 habitantes da cidade do Porto, convocados pela companhia germana-suíça Rimini Protokoll, vão responder este fim-de-semana no espetáculo 100% Porto.

Há 10 anos que o coletivo formado por Helgard Haug, Stefan Kaegi e Daniel Wetzel representa cidades de todo o mundo em cima do palco, um projeto que já passou por 32 destinos, entre Bruxelas, Nova Iorque, Londres, Tóquio e São Paulo. A premissa é sempre a mesma: fazer um mapa cartográfico vivo e homenagear o lugar.

“Esta é uma ideia que viaja por várias cidades e as convida a jogar este jogo com elas próprias”, explica Stefan Kaegi em entrevista ao Observador. “Aqui olhamos para o palco como para um parlamento, porque ele também nos deveria representar, mas um parlamento não tem crianças, analfabetos ou deficientes em cadeiras de rodas.” A diversidade apresentada prova que a peça pode funcionar como um espelho para o espetador, propondo uma reflexão sobre si e o lugar onde habita. Imagens projetadas, dança e música ao vivo mostram um Porto tal e qual como ele é.

O guião, que se divide entre perguntas e afirmações, é adaptado a cada localidade, sendo que a invicta tem características que surpreenderam Stefan. “Esta é uma das primeiras cidades onde eu vejo quase uma ausência total de outras religiões. Conheço poucos lugares em que a população tenha diminuído em tantos anos.”

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Cinco ensaios distribuídos por duas semanas parece ser o suficiente para o 100% Porto ganhar forma, mas não. O trabalho para encontrar estas 100 pessoas começou bem antes com João Arezes, um dos elementos da equipa local. “Foram quase quatro meses de busca”, começa por dizer ao Observador. Género, idade e freguesia foram alguns dos principais requisitos necessários para chegar a uma amostra real selecionada através de uma lógica de nomeação em cadeia, que teve como ponto de partida o gabinete de estatísticas da Câmara Municipal do Porto.

João percorreu a cidade, “que para muitos é pequena”, a entrevistar pessoas que lhe foram sugerindo. Perguntou-lhes rotinas, referências e coisas tão simples como “a que cheira o Porto?” ou “qual é o som do Porto?”. “Muitos responderem que as gaivotas, o trânsito ou até os navios eram sons que identificavam a cidade. Já a maresia, os tascos ou a humidade, uma espécie de mofo positivo, foram os aromas que associavam ao Porto.”

Pelo caminho encontrou realidades que desconhecia e chegou a várias conclusões. “A cidade é dispersa em determinados aspetos, mas única no sentimento de pertença de quem a habita. Foi muito interessante perceber que uma parte massiva deles dizia era do Porto e que nunca queria sair daqui.” Em 100% Porto estão reunidos homens e mulheres, dos 5 aos 84 anos, habitantes das sete freguesias da cidade.

“Aqui não há atores”, quem o diz é Tiago Guedes, diretor do Teatro Municipal do Rivoli, depois de assistir a um dos ensaios. “O que vemos e ouvimos em palco são os posicionamentos dos portuenses relativamente a temas ambientais, sexuais ou políticos.” Mas se há opiniões claramente expostas, outras podem alterar-se com a possibilidade do anonimato. O diretor lembra uma cena em que as respostas do grupo são dadas às escuras com uma lanterna na mão. “É surpreendente pois os testemunhos podem ser completamente diferentes, o que mostra que alguns ainda não têm a capacidade de assumir algumas ideias.” Neste caso é normal, “até porque vão estar 720 pessoas a olhar para elas nesta sala”.

Os protagonistas

Foi durante o jantar depois de um dos últimos ensaios que encontramos Manuel Sousa, conhecido por Manel do Laço, provavelmente o adepto mais famoso do Boavista. Todos os dias se veste de preto e branco, os tons do clube, e aos 72 anos tem energia e alegria para dar e vender. “Sou da melhor freguesia do mundo: Massarelos”, começa por dizer orgulhoso ao Observador.

Octávio Passos/Observador

Emigrou para os Estados Unidos em 1973, regressou três décadas depois por amor à cidade que o viu nascer. “Quando fui para a América levei a minha querida cidade do Porto no coração, sempre gostei de viver aqui.” Ao convite para participar na peça 100% Porto, “disse logo que sim” e fazer parte desta iniciativa dá-lhe “saúde”, pois é no convívio entre novos e velhos que se sente “feliz e em casa”. De todo o espetáculo, a afirmação “já salvei uma vida” tocou especialmente o ex-emigrante. “Eu gosto de estar a comer se o vizinho ao meu lado tiver comida também.” No domingo, segundo e último dia da peça, vai perder “pela primeira vez na vida” um jogo do Boavista. “Penso que tenho de estar aqui presente. Espero que o jogo corra bem, mas aqui eu também estou bem.”

Maria Gil é outra das portuenses presentes no elenco. Mulher, cigana e defensora dos direitos humanos, esta habitante de Santo Ildefonso integra a Saber Compreender, uma associação de ativistas sociais que apoia sem-abrigos, distribui bens e participa em diversas causas sociais. Foi lá que teve conhecimento deste projeto “A mim entusiasmou-me o tema e a oportunidade de falar da cidade. Aceitei especificamente por poder representar as comunidades ciganas no Porto que são constantemente esquecidas”, explica em entrevista ao Observador. Na opinião de Maria, os ciganos foram “as primeiras pessoas a serem gentrificadas”, acrescentando que “houve uma tendência de exclusão que se foi agravando ao longo do tempo”.

Octávio Passos/Observador

Consciente do longo caminho ainda a percorrer, a ativista de 46 anos acredita que “existe um racismo institucional” e que é urgente a sociedade “começar a fazer uma autorreflexão”. Entre as muitas sugestões para um presente e futuro melhores, deixa duas. “Promover mais ações de cidadania e formular de um plano de inclusão das pessoas racializadas na área urbana da cidade.”

Um dos elementos mais novos do grupo, capaz de mudar o futuro, é Fábio Cerqueira. Tem 13 anos, é de Lordelo do Ouro e partilha o palco com a avó, Maria Adelaide. “A minha avó tem 65 anos e 10 filhos, foi selecionada e aconselhou-me.”

Octávio Passos/Observador

Fábio confessa estar “um bocado nervoso” para o dia da estreia. Na plateia vai ter familiares e amigos e apesar deste não ser o primeiro palco que pisa, “é especial” pois com ele vão estar 99 pessoas. “Estar aqui é um privilégio, porque nem todos conseguiram”, confessa ao Observador.

Manuel, Maria e Fábio são alguns dos protagonistas não profissionais que dão a cara e a voz a opiniões e a dados estatísticos que compõem a moldura humana do Porto. Sobem ao palco do Grande Auditório no sábado, pelas 21h30, e domingo, às 17h. O programa comemorativo do 87º aniversário do Rivoli é totalmente gratuito e conta ainda com mais 12 espetáculos, que cruzam teatro, dança, música, literatura e instalação, produzidos por artistas e companhias da cidade.

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