O mecanismo de escrutínio sobre investimento direto estrangeiro na União Europeia (UE), esta quinta-feira aprovado pelo Parlamento Europeu, é “uma excelente base” para que aqueles que estão alerta para a defesa dos interesses europeus possam agir, considerou Ana Gomes.

Em declarações à Agência Lusa, a eurodeputada socialista, uma das mais ativas na sensibilização para os perigos inerentes aos investimentos estrangeiros em setores estratégicos da economia europeia, defendeu que o regulamento aprovado em sessão plenária em Estrasburgo é sinal “de uma mudança de perceção” por parte das instituições europeias, nomeadamente da Comissão, relativamente a esta problemática.

“Gostaria que o mecanismo fosse ainda mais forte, mas, de qualquer maneira, acho que é uma excelente base para que todos aqueles que estão alerta, quer do ponto de vista de segurança estratégica da Europa, quer do ponto de vista dos direitos humanos ou da defesa dos interesses da autonomia estratégica da Europa do ponto de vista económico, tenhamos um enquadramento que nos permite agir”, evidenciou.

Estimando que o novo regulamento funcionará como “um mecanismo de pressão de pares” e de escrutínio público, a eurodeputada do Partido Socialista lembrou que “não há nenhuma pressão mais importante sobre governos senão a pressão pública”.

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“As opiniões públicas têm de estar despertas, assim como os agentes políticos e económicos”, completou Ana Gomes, revelando que ela própria despertou para os perigos do investimento direto de países terceiros quando viu “o plano de privatizações instigado pela troika [em Portugal] ser perversamente utilizado para vender ativos estratégicos, até do ponto de vista da segurança nacional e europeia, à China”.

A política portuguesa percecionou um ponto de inflexão na atitude da Comissão Europeia quando, em agosto passado, escreveu a Jean-Claude Juncker uma carta na qual, juntamente com o alemão Elmar Brok, questionava o presidente do executivo comunitário sobre os investimentos estrangeiros em setores estratégicos da economia europeia, à luz da oferta pública de aquisição (OPA) lançada em maio pela China Three Gorges sobre a EDP.

Na resposta, Jean-Claude Juncker comentou que, no quadro legal àquela data, pouco podia intervir, cabendo às autoridades reguladoras nacionais analisar os riscos da operação. A carta de Juncker demonstrava, segundo Ana Gomes, que, por um lado, a Comissão sentia que não tinha armas para travar “este tipo de investimentos estrangeiros que obviamente visam controlar setores do tecido industrial e outro tipo de infraestruturas estratégicas para a Europa”, mas que já estava a preparar a diretiva, esta quinta-feira aprovada, “para haver uma filtragem do investimento estrangeiro de maneira a garantir que a autonomia da UE não era comprometida”.

Para a eurodeputada socialista, o trabalho desenvolvido pelo Parlamento Europeu (PE) teve influência na mudança de perceção do executivo comunitário, embora os eurodeputados tivessem distintas perceções sobre o tema.

“É evidente que eu e outros colegas da família socialista apresentámos emendas no sentido de tornar mais forte o mecanismo e dar mais meios à Comissão de fazer essa filtragem. Outros, que estão sempre a serviço de interesses estrangeiros, de todas as famílias políticas, tentaram justamente baixar esse tipo de escrutínio. É claro que depois usam o argumento das soberanias nacionais, qualquer desculpa lhes serve”, acusou, considerando, no entanto, que “este é o caminho”.

“Vou estar atenta a isso, porque de facto o que está em causa são os investimentos estratégicos da Europa. Ainda por cima quando sabemos que há outras áreas que cada vez são de maior importância, muito além da economia, como seja o papel das redes digitais”, prometeu.

Parlamento Europeu aprova escrutínio sobre investimento direto estrangeiro na União Europeia

O Parlamento Europeu tinha aprovado esta quinta-feira por ampla maioria um regulamento que cria um mecanismo de cooperação e intercâmbio de informações a nível europeu para escrutinar os investimentos diretos de países terceiros na União Europeia (UE).

O novo mecanismo, aprovado em plenário em Estrasburgo por 500 votos a favor, 49 contra e 56 abstenções, vai permitir à UE coordenar a análise dos investimentos provenientes de países terceiros em setores estratégicos, a fim de verificar se estes ameaçam ou não a segurança ou a ordem pública.

Entre as infraestruturas críticas incluem-se a energia, os transportes, a água, a saúde, as comunicações, os media, o tratamento ou armazenamento de dados, a infraestrutura aeroespacial, de defesa, eleitoral ou financeira e as instalações sensíveis, bem como os prédios rústicos e urbanos essenciais para a utilização dessas infraestruturas.

“Os efeitos potenciais de um investimento direto estrangeiro sobre o aprovisionamento de fatores de produção críticos, incluindo a energia ou as matérias-primas, bem como a segurança alimentar, podem também ser tidos em consideração pelos Estados-membros ou pela Comissão”, diz o regulamento.

O mesmo acontece em relação às tecnologias críticas, como a inteligência artificial, a robótica, os semicondutores, a cibersegurança, o armazenamento de energia, as tecnologias quântica e nuclear, bem como as nano e biotecnologias.

Os Estados-membros terão de informar-se mutuamente e à Comissão Europeia sobre todos os investimentos diretos estrangeiros que forem objeto de análise pelas suas autoridades nacionais. Estes deverão também disponibilizar certas informações, se lhes forem pedidas, como a estrutura de propriedade do investidor estrangeiro e o financiamento do investimento.

O novo regulamento, já acordado com os governos nacionais, permite à Comissão emitir pareceres consultivos dirigidos aos Estados-membros sempre que considerar que um investimento, previsto ou finalizado, pode potencialmente afetar a segurança ou a ordem pública num ou vários países da UE.

O executivo comunitário poderá igualmente fazer uso desta prerrogativa quando um investimento pode afetar um projeto ou programa de interesse para toda a UE, como o Horizonte 2020 ou o Galileo. Este mecanismo de cooperação permite também que um Estado-membro manifeste preocupações relativamente ao investimento direto estrangeiro noutro Estado-membro e formule observações. Cada país continua, no entanto, a ter a última palavra sobre se uma operação específica deve ou não ser autorizada no seu território.

Num relatório aprovado em 12 de setembro sobre o estado das relações entre a UE e a China, os eurodeputados consideraram que os investimentos chineses fazem parte de uma estratégia global no sentido de empresas controladas ou financiadas por Pequim assumirem o controlo dos setores bancário e energético e de outras cadeias de abastecimento.

Segundo o relatório aprovado então em plenário, investigações recentes revelaram que, desde 2008, a China adquiriu ativos na Europa no valor de 318 mil milhões de dólares, montante que não inclui várias fusões, investimentos e empresas comuns.

Em 2017, 68% dos investimentos chineses na Europa vieram de empresas públicas. O regulamento deverá ser aprovado pelo Conselho da UE no dia 5 de março, sendo aplicável 18 meses após a data da sua entrada em vigor.