Se há coisa que nunca pode falhar numa ocasião especial – como é seguramente este concerto de Katia Guerreiro no CCB, onde apresenta Sempre – é o estilo. Quando telefonamos, dois dias antes do concerto, é tempo de cabeleireiro. Pede-nos dez minutos para estar pronta. “Tudo conta, já estou há um mês a trabalhar com o Filipe Faísca para ter um vestido maravilhoso para sexta-feira, depois tem de se escolher a cor das unhas, é assim, não é o mais importante, mas é preciso pensar nestas coisas”, avisa a fadista já com o cabelo pronto.

Esta circunstância é muito para aqui chamada. Só se entra em palco com o vestido pronto, o cabelo no sítio, as unhas pintadas, assim como só se entra em palco, sobretudo com novas dezasseis canções – que integram Sempre, décimo disco da carreira, editado em Setembro, com produção de José Mário Branco – quando se maturam as emoções. “Fazer um concerto num grande auditório do CCB e sobretudo um concerto inaugural, como é o caso deste, onde temos todo um novo repertório, é diferente. Há uma ansiedade acrescida, mas também por isso é que não faço concertos com o novo repertório logo assim que sai o disco, não consigo ter a emoção que quero apresentar, tenho de interiorizar tudo aquilo que foi feito no disco para perceber qual é o ambiente que quero em cima do palco. Quero subir ao palco uma menina já crescida”, esclarece Katia.

Outro dos dados que fornece uma injeção de acalmia, que dá um sermão à ansiedade, é o facto de o Grande Auditório do CCB ter já sido pisado pela artista inúmeras vezes. É quase aquele sentimento de não ter perguntar ao dono da casa que visitamos onde estão os copos – aquele “ah, já sei” que se diz para dentro. Se a isto juntarmos os cinco músicos que constam no disco (ou seja, quem melhor para subir a palco neste caso?) teremos a paz inteira, ou as condições ideais para correr tudo como se quer que corra.

[“De Ti Direi Apenas”, do álbum “Sempre”:]

Pedro de Castro e Luís Guerreiro na guitarra portuguesa, João Veiga e André Ramos na viola de fado e Francisco Gaspar na viola baixo. Na plateia muita gente importante, incluindo o seu “querido produtor: José Mário Branco”. Não é só do palco que se aguardam coisas bonitas. Também do lado da escuridão, como já aconteceu neste CCB, se espera uma retribuição:

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“Volta e meia há assim alguém que se atreve a mandar um grito mais entusiasmado. No CCB já reconheci vozes de pessoas que não sabia que estariam na plateia, amigos que não sabia que vinham assistir ao concerto. Isso foi uma surpresa muito bonita, pessoas que vieram de longe e que se fizeram notar com algumas frases que sei que são delas”, conta.

Do público pode também vir aquela mania de pedir canções universais do cancioneiro do fado português, algo de que Katia já foi vítima, tal como tantos outros intérpretes deste estilo tão particular. Já lhe pediram fados de Amália que nunca cantou e, por isso, não arriscou. Mas também já arriscou fados que, por se sentir confiante, e que “em jeito de graça, em fim de festa” fizeram sentido naquela ocasião. O público é imprevisível, nunca saberemos ao certo quem se senta naquelas cadeiras, quem as ocupa na sua grande maioria. Mas quem tem muitos anos disto – o primeiro disco da fadista nascida na África do Sul é de 2001 – já sabe medir a energia, já sabe dar um significado aos sinais e, perante isso, decidir ir ou ficar:

“É possível perceber para que lado é que o público está mais virado, conseguimos perceber se é um público que gosta mais de fado tradicional ou se gosta mais dos chamados fados musicados. Pode acontecer, perante uma reação diferente, mudarmos o rumo do espectáculo, queremos mostrar as novas coisas que temos mas se temos um público mais afeto a certo tipo de melodias ou andamentos podemos desviar-nos do guião original, mas isso não me desagrada, porque quero sair feliz e só saio se as pessoas estiverem felizes à minha frente”.

“Sempre”, de Katia Guerreiro, álbum editado em setembro de 2018

Fora de uma sequência mais lógica, onde se age em ricochete, perante aquilo que o público nos sugere, o palco também é lugar para acontecimentos mais caricatos. Ou, como aqui, acontecimentos meteorológicos perturbadores. Há muitos anos, num concerto em Paris, antes de subir a palco estava a chover granizo: “Estava a chover a sério. Continuava a chover quando começámos, estava a cantar e comecei a ouvir gargalhadas sem perceber porquê. De repente estou a cantar e cai-me um pingo de água na testa, começou a chover em cima do palco e os músicos estavam a desviar-se da chuva, eu é que não me tinha apercebido, foi caricato, marcou a minha vida”.

Já que falamos de concertos lá fora, há sempre aquela conversa do fado, a possibilidade da carreira internacional ainda que se cante em português. Mas com com o fado, a cantiga da língua é outra. “Sim, essa é a grande magia do fado, pode-se tentar explicar, mas acho que não se consegue. Consegue-se perceber que o fado, por ser um estilo que assenta muito seriamente nas emoções e na verdade, comova as pessoas, o que não se consegue perceber é que não entendendo as palavras consigam entender o sentido daquilo que é cantado. Nada, como o fado, tem essa capacidade”, diz a fadista.

Algo que contraste com a ideia de legendagem e de tradução simultânea como acontece quando vamos ao cinema, ou quando vamos ver um espectáculo de teatro falado noutra língua. Aí, para Katia Guerreiro, perde-se qualquer coisa. E perde-se tanto, na sua opinião, que aquando de uma digressão no Japão teve que tomar medidas drásticas: “A determinada altura tive que proibi-los de legendar o que estava a cantar, a reação sem a tradução era vinte vezes maior do que aquela que encontrava com esta, o que queria era que as pessoas sentissem, para lerem têm traduções que estão nos discos, no meu site, por aí, nem uma folha de sala quero que tenham nas mãos”.

[“Quem Diria”, dueto com José Mário Branco:]

Os seus desejos são ordens. Tudo com as mãos desocupadas esta sexta-feira, no CCB. Até porque de nervos sentidos nas mãos, Katia Guerreiro – que também é médica de profissão – já teve a sua dose. Pedimos-lhe para comparar a ansiedade deste espectáculo a um exercício complexo que tenha feito em medicina. Eis o resultado:

“Houve um momento, na altura do meu internato geral em Évora, que me foi dada a possibilidade de colocar um cateter venoso central, ao contrário do que acontece nos internatos gerais. Isto provocou-me uma ansiedade incrível, fui preparar-me por completo, rever a teoria e a prática, para estar muito preparada. Respirei fundo muitas vezes até começar o procedimento e correu tudo bem. Só uma grande preparação e um grande sentido de responsabilidade é que nos fazem sentir assim, não faço as coisas de ânimo leve, quero muito que seja bom para toda a gente, seja um ato médico ou artístico”.

Portanto, pode este Há Fado No Cais – parceria entre o CCB e o Museu do Fado – ser como colocar um cateter venoso central? “Pode ser, sim, sendo que espero que ninguém morra. Quer dizer, alguém pode-se sentir mal, mas tenho a certeza que vão estar vários médicos na sala, nem tenho que ser eu a socorrer, a assistência médica no Grande Auditório está assegurada”, garantia de Katia Guerreiro. Pelo menos isso. Quanto às emoções à solta na sala… talvez já não haja médico que possa ajudar. Cada um com as suas e ainda bem.

Concerto esta sexta-feira, dia 15, no CCB, em Lisboa, às 21h00