Enviada especial a Luanda

Começou com uma amizade, mas evoluiu para muito mais. A relação entre Portugal e Angola é agora uma “fraternidade” que sobrevive a tudo. “Estamos condenados a ser irmãos”, numa relação que “persiste para lá de todos os agravos e injustiças do passado”, como disse Marcelo Rebelo de Sousa em pleno discurso na sessão solene da Assembleia Nacional, em Luanda. Antes, aos jornalistas, tinha dito que mais do que amizade, a relação entre os dois era agora uma “parceria estratégica” que tem a obrigação de resistir a todos os irritantes do passado, e a todos os “imponderáveis e os imprevistos” que possam vir surgir no futuro. As juras de amor fraterno foram eternos.

Primeira, a amizade. Essa há muito que está consolidada e materializou-se no convite — a título pessoal — do Presidente angolano ao Presidente português para estar presente no seu aniversário. Os dois desdobraram-se em elogios e em “afeto”, depois de já terem brindado, à mesa de jantar, com uma garrafa de vinho do Porto — presente de Marcelo — extraída propositadamente de uma barrica “rara” do ano de 1954, ano de nascimento de João Lourenço. Depois, a parceria. Seis meses depois da visita do primeiro-ministro António Costa a Angola, que encerrou o jejum de uma década, a relação de amizade evoluiu de uma simples amizade histórica para uma parceria estratégica à prova de bala. Prova disso são, não só os 35 acordos bilaterais assinados neste tempo recorde, mas também o andamento que está a ser dado ao pagamento da dívida de Angola às empresas portuguesas. Em que montantes? Ninguém diz, mas Marcelo garante: dois terços da dívida certificada já foi paga.

“Estamos a elevar o nosso relacionamento a uma parceria estratégica. Agora, já não é só amizade ou cooperação, é uma parceria multilateral”, disse Marcelo Rebelo de Sousa na conferência de imprensa conjunta esta quarta-feira no Palácio Presidencial, em Luanda, depois de Marcelo ter assinado 11 instrumentos de cooperação bilateral e ter sido agraciado com a mais alta condecoração do Estado angolano.

Uma parceria que, disse João Lourenço, nasce de uma “vontade férrea dos dois países em manterem-se de mãos dadas”, e que é à prova de todos os “imprevisíveis e imponderáveis”, sublinhou Marcelo. “Vivemos num mundo imponderável e imprevisível, por isso é bom que haja pilares seguros, uma parceria estratégica segura, para enfrentar todos os imponderáveis da vida financeira, económica, política e mundial”, disse o Presidente português no jardim do Palácio Presidencial angolano.

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E se João Lourenço falou numa “vontade férrea”, Marcelo insistiu na “vontade política” que há agora, e não havia antes, de elevar a relação bilateral a um outro nível. E esse outro nível não passa apenas por “ficar bem na fotografia” de mãos dadas, mas sim por “resolver [de facto] os problemas das pessoas”. Tal como, lembrou Marcelo, estava escrito no mausoleu de Agostinho Neto, presidente fundador de Angola.

Otimismo no pagamento das dívidas e 35 acordos assinados em tempo recorde

E para “resolver os problemas das pessoas” foram assinadas dezenas de acordos de cooperação bilaterais no espaço de apenas seis meses, desde que António Costa visitou Angola em setembro passado, iniciando um ciclo de três visitas que passou pela ida de João Lourenço a Portugal e que agora culmina com a visita de Marcelo. No total, entre as três visitas, foram assinados 35 instrumentos de cooperação, lembrou João Lourenço: 24 durante as duas primeiras visitas, e 11 esta quarta-feira, em Luanda.

Trata-se de acordos em áreas como a igualdade do Género e Assistência a Grupos Vulneráveis e Formação de Quadros, o domínio da atividade marítima e portuária, bem como áreas da simplificação, modernização administrativa e reforma do Estado. Saúde e Educação também não ficam de fora.

A lista é grande. De tal maneira que João Lourenço ironizou com o facto de, mesmo que quisessem, talvez já não houvesse domínios a sobrar para novas assinaturas de protocolos: teriam de descobrir novos.  “É caso para dizer que quando eu tiver de voltar a Portugal, ou o Presidente Marcelo voltar aqui — e isso vai acontecer necessariamente, não vamos deixar que passe um período muito longo — muito provavelmente não teremos muitos mais instrumentos para assinar. A impressão é de que esgotámos os domínios de cooperação”, disse, sublinhando de seguida que isso não será problema. “Evidentemente que descobriremos um ou outro que tenha sobrado”, disse.

Isto é raríssimo, termos dado estes passos neste espaço de tempo tão curto. Só é possível pela fortíssima vontade política que tivemos. Porque o essencial é reforçar as relações de confiança que envolvam os trabalhadores e empresários dos dois países. E essa confiança nasce da vontade política. Tudo o que  se faz não é para o Presidente João Lourenço e eu próprio ficarmos bem na fotografia, é para resolvermos os problemas das pessoas”, disse Marcelo.

A questão das dívidas de Angola às empresas portuguesas é o elefante no meio da sala, mas, em resposta aos jornalistas portugueses, João Lourenço deixa claro que “não é tabu” — “é para se falar abertamente”. “Existir dívida é normal, desde que seja certificada e que o devedor assuma o compromisso de a pagar”, começou por dizer João Lourenço, sublinhando de seguida que é esse processo de certificação da dívida que está, justamente em curso. E a “todo o vapor”, como já tinha dito Marcelo. “À medida que se for certificando a dívida, os pagamentos vão sendo feitos”. Uma coisa é certa: “Existe da parte de Angola a vontade firme de honrar os compromissos com as empresas e o governo português”, limitou-se a dizer, remetendo os montantes para os Ministérios das Finanças dos dois países.

Marcelo Rebelo de Sousa arriscou números, não de montantes mas de proporções: dois terços da dívida identificada já corresponde a dívida certificada, e, dessa, “cerca de dois terços já está a ser paga”. “Foi definida uma metodologia, que foi prosseguida com afinco e em ritmo muito rápido pelos governos dos dois países, mas em termos práticos em seis ou sete meses é notável os avanços que foram feitos”, sublinhou Marcelo, depois de João Lourenço ter garantido que a forma de realização dos pagamentos não está a ser imposta por Angola a nenhuma empresa portuguesa: “Não existe nenhum credor cuja forma de pagamento tenha sido imposta. As formas são negociadas, caso a caso”, disse, sublinhando que Angola iria “honrar” o compromisso e pagar as dívidas a Portugal.

“Condenados a ser irmãos”. A fraternidade que supera as injustiças de outros dias

Mas isto é a parceria. Minutos depois, no discurso curto que fez no hemiciclo da Assembleia Nacional angolana, Marcelo Rebelo de Sousa usou e abusou do “afeto” que já tinha avisado ter trazido para oferecer e elevou a relação a um outro patamar: o da fraternidade. “Gratidão”, “respeito” e “fraternidade”, foi o que o Presidente português levou para o púlpito da Assembleia, lembrando que os dois países estão “condenados a ser irmãos”, por isso mais vale serem daqueles irmãos que se ajudam do que daqueles que andam à bulha. 

“Estamos condenados a sermos irmãos, por isso mais vale assumirmos que o somos, e dessa inspiradora inevitabilidade retirarmos todos os proveitos, do que teimarmos em negar uma realidade, porque esta fraternidade nunca desaparecerá”, disse, assumindo logo a seguir estar “emocionado”.

Para Marcelo, essa “fraternidade” (bem maior do que uma simples amizade), que os dois partilham é “mais do que a parceria económica e financeira, mais do que a partilha linguística e cultural, mais do que a distância geográfica”. É uma fraternidade que estava escrita nas estrelas, e que, portanto, só tem proveitos a retirar. “Nas horas boas e nas horas más”.

P.S. No final da conferência de imprensa nos jardins do Palácio Presidencial, Marcelo Rebelo de Sousa revelou finalmente que presentes levou na mala para o aniversário de João Lourenço, que tinha sido na véspera. Ainda que João Lourenço tenha dito que o presente foi a “presença [de Marcelo]”, com a sua “forma de ser, muita aberta e informal” que fez com que tivessem “rido muito” durante o jantar, o que Marcelo lhe levou foi um álbum de fotografias da visita de João Lourenço a Portugal em novembro passado, e uma garrafa de vinho do Porto de uma colheita especial de 1954 (ano de nascimento do aniversariante), que foi aberta pela primeira vez para extrair uma garrafa digna da ocasião.