3 de Outubro de 2014. Sarah Koenig era uma jornalista semiconhecida. Colaborava com frequência no programa de rádio “This American Life”, de Ira Glass, uns trabalhos jornalísticos aqui e ali e a voz que ficava no ouvido. Quem ouve regularmente “This American Life” certamente lembrar-se-á da forma discreta com que “Serial” era anunciado, pistas sobre o que iria ser, teasers, a ideia de uma espécie de spin-off do programa do mesmo Ira Glass. Naquele dia de Outubro, quando o primeiro episódio foi para o ar, ninguém imaginava que “Serial” iria tornar-se num dos maiores fenómenos culturais de 2014 e tornar pop um modelo de programa em áudio que lançaria as bases para o mesmo formato em televisão.

Em 2014, os podcasts já não eram novidade e já ninguém os tratava por “novo fenómeno”. Já estavam instituídos, mas faltava o programa certo para instaurar uma espécie de revolução nos conteúdos possíveis. O bilhete da lotaria saiu a “Serial”. Numa altura de crise no jornalismo, com pouco espaço para as grandes investigações, a primeira temporada de “Serial” trouxe uma história que cativou milhões. Como Ira Glass manifestou no seu programa, quando apresentou “Serial”, a ideia passava por ouvir um programa de rádio como se fosse uma série de televisão.

[o trailer de “The Case Against Adnan Syed”:]

A ideia, afinal, era fazer uma investigação jornalística com um ritmo de série, uma narrativa que motivasse o suspense, levantasse permanentemente dúvidas e agarrasse o ouvinte até ao final, na esperança que alguma resolução fosse apresentada: e claro que não isso não aconteceu. Milhões de pessoas ouviram-no (números de 2017 revelam que mais de 175 milhões de pessoas o fizeram), milhões desses ficaram convertidos ao formato de podcast e a investigação de Koenig fez reabrir oficialmente o caso de Adnan Syed, condenado por um crime que diz não ter cometido.

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O caso

A primeira temporada de “Serial” (entretanto foram feitas mais duas, uma em 2015/2016 e outra em 2018, também muito boas, mas sem o impacto da primeira) pega num caso de homicídio que aconteceu em 1999. Hae Min Lee, uma estudante de 18 anos, foi encontrada morta em Baltimore. Na altura Sarah Koenig era jornalista nessa mesma cidade e noticiou o caso. Voltou a ele em 2014 após ter sido contactada por um familiar de Adnan Masud Syed, que foi julgado pelo homicídio e que até hoje se encontra na prisão. A família defendia – e continua a defender – a inocência de Adnan e que o caso não tinha sido bem investigado.

Sarah Koenig foi atraída pela ausência de provas claras que colocavam Syed no lugar do assassino. Sim, era um ex-namorado de Hae Min Lee; sim, havia várias razões para ser o suspeito número um, mas também existiam vários alibis que colocavam Syed fora do cenário e algumas discrepâncias em algumas declarações que apontavam para uma falsa incriminação.

Sarah Koenig teve acesso a muito material, contacto direto com Adnan Syed e uma série de testemunhas do caso, bem como amigos de Hae Min Lee e Adnan. “Serial” reanimou o caso, por todo o mundo pessoas puseram-se em posição de investigar as provas e de contribuir como podiam, várias teorias surgiram – algumas lançadas pela própria Koenig – e o fulgurante interesse deu coragem a Syed para levar o caso a um tribunal de uma instância superior.

Adnan Syed

Ao longo dos dez episódios de “Serial”, a jornalista conseguiu trabalhar os factos que tinha em mãos, questionar todas as provas que foram a julgamento e atiçar o ouvinte para uma espécie de resolução do caso durante a temporada. A favor da verdade, e do jornalismo, Sarah Koenig descobriu uma fórmula de “serializar” o jornalismo, dramatizá-lo, criando uma “ficção de verdade” para o ouvinte. No fundo, convenceu quem escutava de que ouvir o programa poderia mudar o futuro de uma pessoa. Convenceu o ouvinte de que, pelo simples facto de ouvir, se criaria uma conclusão para um caso que já estava resolvido. Convenceu o ouvinte de que ele poderia ser Adnan Syed.

“The Case Against Adnan Syed”

Pode-se alegar que o sucesso de “Serial” foi tão grande que gerou um documentário para televisão. Não é bem o caso. Amy Berg percebeu o potencial de “Serial” e também percebeu que ficaram muitas arestas por limar, detalhes do caso que ficaram por tratar. “The Case Against Adnan Syed” foi uma oportunidade que Amy Berg viu para continuar a explorar o homicídio de Hae Min Lee numa altura em que se falava na reativação do julgamento de Adnan Syed.

A série documental da HBO, dividida em quatro partes, estreou-se no dia 10 de Março com intenções de apanhar o momento em que se poderia dar a tal reavaliação do processo. Azar dos azares, no dia 8 o tribunal de Maryland renunciou a decisão de dar um novo julgarmento a Adnan Syed. Tudo na mesma, portanto.

Hae Lee Min

Mas então porque é que “Serial” ou “The Case Against Adnan Syed” resultam? Porque, de certa forma, o ouvinte/espectador é aliciado para estas narrativas alternativas. Explorar as possibilidades da(s) verdade(s) de um qualquer abuso da justiça: a mera suspeita é um potencial de atração para o espectador e um caso como o de Adnan Syed dá pano para mangas para ser explorado de diversos ângulos, de diversas fórmulas e permite contestar uma certa leveza na investigação que acontece há cerca de vinte anos.

“Wild Wild Country”: a história de uma seita que é mais empolgante do que qualquer série

E também porque este tipo de trabalhos conta uma história que gostamos de ouvir: um jornalista, um realizador, um cidadão comum pode ir além de uma investigação policial. Mesmo que ela não leve nada, é a excitação de o poder fazer, de desmontar um caso destes que torna tudo especialmente aliciante. O espectador sabe à partida que não haverá resolução, mas que qualquer acha na fogueira é suficiente para dar uso ao seu boné de investigador de sofá e à sua desconfiança natural. Ao fim de dois episódios, “The Case Against Adnan Syed” pouca acrescenta à investigação de Koenig, apenas adensa, por outros ângulos, a possível inocência de Syed.

Depois de “Serial”

Tanto o podcast como esta nova série não são atos isolados. “Serial” é uma espécie de extremidade de um zeitgeist que atingiu o mundo dos podcasts e da televisão. Casos como o de Adnan Syed começaram a surgir como cogumelos, este tipo de narrativas seriadas, com as suas próprias teorias, tornaram-se numa moda que até já atingiu Portugal, com a estreia há uma semana de “The Disappearance of Madelaine McCann” na Netflix, que não é de produção portuguesa mas que aborda um caso ocorrido no nosso país.

[a primeira temporada de “Serial”:]

Para televisão, a Netflix tem sido um portento na criação destes produtos, com uma série de casos de popularidade desde 2015: “Making a Murderer”, “Evil Genius” (2018), “Wild Wild Country” (2018), “The Staircase” (a versão original é de 2004 mas ressurgiu em 2018 com novos episódios na plataforma de streaming), “The Keepers” (2017) ou “Amanda Knox” (2016). Com a chegada da HBO Portugal há um novo mundo deste tipo de documentários a ser explorado. Entre eles, um que não é estranho aos espectadores portugueses (passou por diversas vezes nos canais TVCine) mas que não pode ser ignorado: “The Jinx: The Life and Deaths of Robert Durst”.

Falámos com as autoras da série “Making a Murderer”

Se procura podcasts, há muita coisa boa também. A terceira temporada de “Serial”, sobre o sistema judicial norte-americano é um excelente trabalho de jornalismo. “Criminal” dedica cada episódio a um crime ao invés de dissecar a um fundo um caso; “Dirty John” foi primeiro um podcast antes de virar série de televisão (que está agora na Netflix); “S-Town” foi outro fenómeno que partiu de “This American Life”, que conta uma história de partir o coração com uma narração absolutamente fora do normal; “The Butterfly Effect”, onde se pode ouvir o jornalista britânico Jon Ronson com o seu jeito único a explorar o mundo da pornografia; ou “Crimetown”, cuja primeira temporada é uma boa injeção sonora sobre crime organizado e corrupção (e há um português envolvido no meio da história).

Claro que, ao longo destes anos todos, já se encontrou espaço para a paródia. A melhor de todas pode ser vista na Netflix: “American Vandal”. Se é fã deste género de televisão, não há nenhuma razão para não ver “American Vandal”. A não ser, claro, por não ser verdade e por exagerar com humor aquilo que acontece na realidade. Mas ambas as temporadas valem muito a pena, desmontam bem o nosso papel enquanto espectador e proporcionam uma boa análise crítica ao formato e ao método utilizado por este tipo de programas.