É verdade que a premissa principal de um festival de música é a valorização daquilo que lhe dá nome… A música. Contudo, com o Tremor é tudo ligeiramente diferente. O evento que já vai na sua sexta edição e que arranca já esta terça-feira, 9 de abril (termina no próximo sábado, dia 13) é um verdadeiro regalo para os sentidos e isso percebe-se em vários aspetos, das bandas que o compõem, claro, aos sítios deste recanto mágico que é os Açores, comendo, bebendo e mergulhando no imenso que o arquipélago tem para dar. Na lista que se segue tem algumas sugestões de como tirar o máximo deste festival, seja nos concertos imperdíveis ou nas experiências que terá à sua disposição. Tome nota de tudo e deixe-se levar.

Tomar banhos de água quente ao luar na Poça da Dona Beja

O vídeo-resumo da passada edição do Tremor começa com imagens de um jovem, de tronco nu e cabelo molhado, a falar para uma câmara, enquanto à sua volta flutuam ondas de vapor. Esse plano que acompanha toda a narrativa da obra foi filmado na Poça da Dona Beja, um complexo de pequenas piscinas de águas termais (sempre quentes), que tem uma série de propriedades benéficas e, acima de tudo, proporciona um relaxar tremendo. Espalhadas por cima de uma espécie de ribeiro natural, os pequenos tanques retangulares que compõem esta maravilha poderão recebê-lo até às 22h35. Pode não parecer nada de mais mas o facto de estar de noite e de à sua volta só existir calor e aconchego fazem-no sentir duplamente confortável. Tudo isto pela módica quantia de 6€ por pessoa (tempo de utilização ilimitado, 4€ para crianças com idade até aos seis anos).

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Ouvir uma lenda do funk-jazz da Etiópia

O concerto de Hailu Mergia — sábado, 13 de abril, às 19h45 no Teatro Micaelense — é o grande destaque do cartaz do festival açoriano, a atuação que sugeriríamos a toda a gente se nos obrigassem a escolher apenas uma, um acontecimento a reter para a posteridade para o poder contar um dia a filhos ou netos: “Vi o Hailu Mergia ao vivo, se não sabes quem é devias saber”.

Toda a história é fascinante. O músico etíope que fez parte do grupo Walias Band, o primeiro do país a viajar para atuar nos EUA (em 1981), vive na América do Norte desde os anos 1980, mas teve apenas relativo sucesso e durante pouco tempo. Ainda nos anos 1980, a banda acabou e Hailu Mergia, que já trabalhava como taxista nos EUA, caiu no esquecimento, apesar de alguns álbuns gravados a solo.

Nunca deixou de tocar com amigos e raramente deixou de levar um teclado no banco de trás do táxi, enquanto transportava passageiros. Estava porém há mais de década e meia sem dar concertos a sério e sem editar álbuns quando foi descoberto por um investigador norte-americano de música africana, Brian Shimkovitz, criador do blogue — posteriormente editora — Awesome Tapes From Africa. A música era demasiado boa para não ser recuperada e em 2018, cerca de 20 anos depois do esquecimento, Hailu Mergia lançou um álbum de temas inéditos, Lala Belu. É tão atual quanto um disco de um músico o pode ser por estes dias, é clássico e futurista, norte-americano e etíope, analógico e digital, tem funk e tem jazz — e todo aquele groove é de ir ao espaço e voltar. Tem dúvidas? É só ouvir do início ao fim aqui em baixo. A crítica rendeu-se e Hailu Mergia começou a dar concertos pelo mundo, já tendo tocado inclusivamente no Porto (Serralves em Festa) e Lisboa (Galeria Zé dos Bois). Agora, aterra nos Açores. Recebamo-lo como merece.

Comer o melhor do mar estando, literalmente, em cima dele

Se há coisas em que os Açores são pródigos são a beleza natural e grande variedade de carne e peixe de alta qualidade. Um dos sítios onde estes dois belos mundos coexistem é na zona da Caloura, no sul da ilha de São Miguel (perto de Água de Pau), onde encontra um dos melhores restaurantes de peixe grelhado de todo o arquipélago, que poderá saborear tendo o mar a passar quase debaixo da sua mesa — parte do restaurante fica numa espécie de plataforma suspensa por cima de uma pequeníssima enseada rochosa. Se tudo correr bem, antes da comezaina ainda poderá dar um mergulho nas piscinas naturais de água salgada que ficam a poucos metros da mesa de refeições. Prepare-se para saborear peixes como o alfonsinho ou o boca-negra grelhados na perfeição. Os preços variam consoante o tamanho do bicho que escolher mas, de forma geral, o preço é bastante em conta — conte com um preço médio de cerca de 15€ por pessoa, sem grandes aventuras. Bom proveito!

Ouvir o saxofone de Colin Stetson  

Experimental é um termo que às vezes causa urticária, que pode ter o condão de segregar em vez de explicar. O melhor talvez seja substituí-lo por outra expressão, dizer que a música que Colin Stetson faz não se conforma com nenhum modelo ou corrente musical. É jazz? Não é. É rock? Também não. Eletrónica? Longe disso. E no entanto, o que é? Ninguém sabe bem, mas toda a gente sabe que é qualquer coisa que ainda não se tinha ouvido. E isso não deixa de ser uma vitória para um músico, mova-se ele em terrenos mais pop ou em terrenos mais alternativos.

Algumas coisas são possíveis de dizer sobre a música deste rapaz de barba farta do Michigan, EUA: que a repetição hipnótica de sons é tão importante quanto os sons dissonantes que de repente atiram essa repetição às urtigas; que Colin Stetson gosta de torcer a melodia, desfazê-la, introduzir sons a que os mais conservadores chamariam ruído; e que é curto chamar-lhe apenas saxofonista, porque mais do que o virtuosismo técnico e a admiração dos pares — que seria mais facilmente conseguida se tocasse o instrumento de forma convencional — parece interessar-lhe o seu uso para compor peças complexas. Tal qual um produtor de música eletrónica, ou um diretor de uma big band de free jazz.

Outra coisa importante que ainda não dissemos: com 44 anos, já grava discos a solo ou como líder de bandas que reuniu em seu torno há década e meia, mas também já tocou e gravou com Tom Waits, Arcade Fire, TV on The Radio, Feist, Bon Iver, Laurie Anderson, Lou Reed, The National, BADBADNOTGOOD, David Byrne, Evan Parker, Anthony Braxton e Animal Collective — entre outros. Antes do concerto no Tremor — na terça-feira, 9 de abril, às 21h30 no Auditório Luís de Camões — atuou a 7 e 8 de abril respetivamente em Braga (GNRation) e Lisboa (Igreja de St. George, a convite da Galeria Zé dos Bois).

Beber a cerveja mais bem tirada do Atlântico

Ninguém sabe explicar muito bem como ou porquê, mas na zona de Vila Franca do Campo existe uma casa onde a cerveja sabe melhor que em qualquer outro sítio. “Cervejaria A Lagoinha” é o nome desse nirvana dos amantes da cevada e trata-se de um pequeno espaço, muito na onda da típica tasca portuguesa gerida pela mesma família há mais de cinco décadas. Hoje em dia é Nuno Correia quem gere esta casa que em tempos foi uma mercearia. Ele é neto do fundador desta instituição, João Bento Correia, mas gere a casa como se tivesse sido sua desde o início, regulando diariamente a pressão das torneiras de onde sai o líquido amarelo claro e limpando quase obsessivamente todas as suas componentes. Há quem diga que é este o segredo do sucesso, apesar de outros garantirem que o fator determinante é mesmo o preço modesto, 0,65€ por “fino”, como chamam à lisboeta “imperial” nestas terras insulares (à semelhança do que acontece no norte de Portugal continental). Caso não se concorde com as teorias acima, pode-se sempre acreditar na religião, já que o padre local benzerá todos o barris que são abertos nesta Lagoinha.

Ouvir o psicadelismo dos Moon Duo e dos Cave

Há meia dúzia de anos, talvez um bocadinho mais, o pop-rock psicadélico voltou de repente a ser ‘uma cena’. Mesmo em Portugal, residentes do bairro lisboeta de Alvalade e da linha de Cascais e antigos estudantes do colégio São João de Brito (à época, já universitários) deixaram crescer barbas e bigodes, reuniram-se em Volkswagens Polos que se tornaram naves espaciais, formaram bandas, sonharam ser hippies das classes oprimidas sentados nos jardins do Out Jazz ao domingo, voltaram a ouvir os Beatles, os Doors e os Pink Floyd (mas só o primeiro disco, só quando tinham o Syd Barrett) que os pais esconderam no fundo do armário dos discos.

O motor do regresso ao pop-rock do psicadelismo, dos efeitos de reverberação e da pose hippie-blaisé, foi uma banda australiana chamada Tame Impala, que entretanto amadureceu, tornou-se yuppie e passou a ir discutir o sistema, ou a música pop (já não sabemos bem do que é que estamos a falar), como tantos adultos: ao brunch (alternativo) de domingo, de óculos Rayban na cara. O pop-rock alternativo à base de teclados cósmicos já viveu melhores dias, até porque a “cena alternativa” tem mais horror à repetição do que a indústria pop e os músicos alternativos, como Groucho Marx, só querem ser de clubes que não os aceitem como membros. Talvez por aí se perceba que o movimento tenha perdido alguma da aura de coolness que já teve.

Bandas como os Moon Duo e os Cave, porém, são de um psicadelismo diferente, que vai resistindo: mais sombrio e sem aspirações a ser dançado de cerveja artesanal na mão (nada contra), no caso dos Moon Duo; mais eletrónico, tropical e inspirado na música de herança negra (o jazz e o blues, nomeadamente), no caso dos Cave. Vale a pena ouvir ambos — os Moon Duo no sábado, 13, às 23h no Coliseu Micaelense e os Cave quinta-feira, 11, às 23h59 no Arco 8 — mas em especial os segundos, um dos segredos bem guardados de Chicago.

Tremor Todo-o-Terreno

Imagine que todas as personagens do filme “Parque Jurássico” podiam passear pelo frondoso verde que tinham à sua volta sem temer ataques de velociraptors e com música boa a soar-lhes ao ouvido. Pois bem, de forma muito resumida, é isto o Tremor Todo-o-Terreno, um dos elementos mais criativos deste festival –leva vários grupos de festivaleiros a descobrir os trilhos mais bonitos da ilha com uma banda sonora feita a preceito por artistas convidados, que se inspiraram no mesmo trilho que os ouvintes irão fazer. Este ano o ficheiro MP3 que a organização envia sempre aos inscritos antes do percurso começar foi pensado pela Natalie Sharp’s Earthly Delights, que fará uma atuação no final dos dois percursos (são idênticos) planeados para esta edição, que decorrem a 10 e 11 de abril. Não se revelam mais pormenores porque o segredo não só é a alma do negócio como é um dos elementos mais estimulantes do Tremor como um todo.

Viajar pelo cosmos com Jacco Gardner

A maior prova do que acabámos de dizer aqui sobre o pop-rock psicadélico ali em cima? Até Jacco Gardner deixou de cantar e de tentar fazer canções mais ou menos canónicas. O músico holandês foi outrora uma espécie de aspirante a Syd Barrett dos tempos modernos: oiça-se o disco, aliás merecedor de atenção, Gabinet of Curiosities, de 2013, para o comprovar.

Somnium, o álbum mais recente, foi editado em 2018 e é uma espécie de passagem das drogas leves ao LSD. Inteiramente instrumental, é um belo disco para ouvir numa floresta mágica rodeado de índios e feiticeiros hindus, reais ou imaginados. Dado o cenário verdejante e campestre da ilha, pode ser que não seja assim tão diferente — mesmo que o concerto seja no salão nobre do Teatro Micaelense (na quinta-feira, 11, às 21h30).

Tremor na Estufa

É um ex libris do Tremor. Desde que alguém se lembrou, na primeira edição, de organizar um concerto numa estufa de ananáses que o nome pegou e todos os que se seguiram foram nomeados desta forma. Na sua base, estes eventos consistem sempre numa atuação surpresa em que o público não sabe nem quem vai tocar nem como onde o vai fazer. É-se apenas informado de que à hora X tem de se estar no local Y. Já houve espetáculos à beira de uma piscina termal, outros em museus, um em plena Lagoa do Fogo e até um num hangar do aeroporto — as possibilidades são infinitas e há algo de entusiasmante em tudo isso. Não perca nem um, fica a dica.

Dançar com os Pop Dell’Arte e ser maravilhado por Lula Pena

Dispensam apresentações. Liderados por uma das figuras mais marcantes do pop-rock alternativo português, João Peste, os Pop Dell’Arte foram sempre autores de uma espécie de lado B do pop-rock nacional. Eles próprios foram, em certa medida, uma espécie de lado B do país, demasiado intelectualizados, urbanos e disruptivos para encher estádios, mas demasiado originais e perspicazes para serem ignorados. Dancemos com eles a partir das 23h de quinta-feira, 11 de abril, no Ateneu Comercial de Ponta Delgada — mais rápido em “Querelle”, mais languidamente em “O Amor É… Um Gajo Estranho”. Dancemos pela nostalgia, é claro — e não é bom?

Também não é fácil resistir ao encantamento de Lula Pena. Não precisa de muito, basta-lhe uma guitarra acústica, acordes hipnóticos mas delicados, uma voz que canta em português, espanhol ou francês como quem sussurra, um canto solene levemente afadistado mas com uma aragem que nos diz que não estamos nos Açores (mais propriamente no Museu Vivo do Franciscanismo, às 22h de sexta-feira, dia 12), estamos sim a passar um fim de tarde numa livraria recôndita do Rio de Janeiro ou de Paris.

Descobrir o Brasil de Maria Beraldo

A editora e promotora de concertos e festivais Lovers & Lollypops, responsável por este Tremor, aposta forte na divulgação da música da brasileira Maria Beraldo em Portugal. Para já, trouxe a Portugal o seu disco de estreia, Cavala (por ora, via Bandcamp, uma plataforma de streaming), agendando-lhe ainda concertos neste festival (às 20h30 de sábado, 13, no Ateneu Comercial de Ponta Delgada), em Lisboa (Musicbox, dia 17), no Porto (Maus Hábitos, dia 18) e em Barcelos (Linha TGV, dia 19).

Compositora, cantora e clarinetista, é autora de uma pop eletrónica profundamente política, desafiadora das convenções associadas a género e sexualidade. Como canta nessa bela canção “Amor Verdade”:

“Mãe, gosto muito dos homens, sim
de vê-los invadindo o meu sonho assim.
Mas no frio do anoitecer
quem me fez delirar
foi uma mulher”

Rockar com os Za! e The Sunflowers

Há quem chame aos Za! a melhor banda desta planeta. É capaz de ser exagerado, mas que estes espanhóis têm ginga e sabem rockar não restam grandes dúvidas, é só ouvi-los, em estúdio ou — preferencialmente — ao vivo. Atuam às 22h30 de sábado, 13, na Garagem Antiga Varela.

Quem também tem talento para essa arte de fazer mexer corpos, provocar mosh pits e levar cerveja a voar na plateia são os portugueses The Sunflowers. São só dois, Carlos de Jesus e Carolina Brandão, mas têm power para dar e vender, com um punk and roll ondulante sem grandes travões. É seguir prego a fundo e acompanhar — a partir das 19h15 de sábado, 13 de abril, no Out of The Blues Hostel.