“Eu sou um de vós, podia estar aí convosco. O que é que você é, um homem comum? Eu também sou”. Bruno Lage tem repetido desde janeiro, altura em que substituiu Rui Vitória no comando técnico da equipa principal do Benfica, que não é mais do que Bruno, o rapaz de Setúbal que explica táticas com garrafas de água e que subiu por todos os escalões da formação do Seixal até chegar à Luz. O treinador encarnado sublinha, conferência após conferência, declaração após declaração, jogo após jogo, que tudo o que faz é simples. É assim, aliás, que explica como o Benfica foi campeão nacional.

Sem nunca se esquivar a nenhuma pergunta, de João Félix a Jonas e de Rui Vitória a Luís Filipe Vieira, é fácil perceber quais são as preferidas de Bruno Lage: as que falam sobre tática, sobre transições defensivas e ofensivas, sobre procurar espaço entre linhas ou jogar mais em posse do que em velocidade. É com essas perguntas, as que falam sobre futebol propriamente dito, que o treinador sorri, cruza a perna e decide alongar-se na resposta. Esta quinta-feira, o técnico do Benfica respondeu às perguntas dos jornalistas durante uma Open Talk no Caixa Futebol Campus, no Seixal, e nem as poucas horas que provavelmente terá dormido – o jantar comemorativo do título foi esta quarta-feira – o deixaram menos bem disposto. O acordado era uma hora de conversa e é exatamente ao fim de 60 minutos que o assessor de comunicação do Benfica interrompe e tenta dar por terminada a sessão. “Podemos falar mais um bocadinho”, diz Lage, “aproveitem agora que depois vou para longe daqui e só ando na rua de chapéu, óculos de sol e bigode”.

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A conversa não tinha temas premeditados mas tinha tópicos quase obrigatórios: a época de revelação e a eventual saída de João Félix; a evolução na continuidade que terá de ser a próxima temporada; e o próprio Bruno Lage, que pegou numa equipa a sete pontos da liderança e tornou-a campeã nacional atingindo o melhor registo de golos de sempre do Benfica no Campeonato (103). O primeiro ponto e o último, porém, estão interligados – e o treinador explicou logo à partida porquê. “O presidente pediu-me para assumir a equipa principal numa altura em que já não estava à espera. Houve uma primeira situação antes, em dezembro, e depois outra em janeiro. Cheguei a casa por volta das 20h30 e o presidente liga-me a pedir para voltar ao Seixal depois de lá ter estado a trabalhar o dia inteiro. Regressei à base para falar com o presidente e foi aí que ele me pediu. Depois quando já estava no carro, a ir embora outra vez, pensei que tinha de deixar uma marca. Pensei logo que tinha de meter o miúdo a jogar”, revelou Bruno Lage, referindo-se a Félix e ao jogo com o Rio Ave, onde se estreou com uma vitória por 4-2 (e onde o jogador português foi titular e bisou).

Os primeiros quatro jogos do treinador ao leme dos encarnados trouxeram quatro vitórias e dois resultados tangenciais em Guimarães, primeiro para a Taça de Portugal e depois para o Campeonato. As duas vitórias pela margem mínima, tal como Bruno Lage já tinha revelado anteriormente, foram também o primeiro momento em que o treinador sentiu que poderia “ser o líder” dos jogadores. “Na altura disse-lhes que a conquista de Portugal tinha começado ali e que a nossa reconquista também podia começar naquele sítio. Senti que ia ser o líder deles. Estamos no balneário a falar e há um momento em que me sento com eles e peço para olharem uns para os outros. A partir daquele momento iam ter de jogar em função uns dos outros, um teria de correr pelo outro. Comecei a sentir que eles estavam a ouvir-me e aí não há hipótese. Eles dão ainda mais se sentirem que podem jogar como equipa”, disse o técnico de 43 anos, que antes de chegar à equipa principal do Benfica passou por todos os escalões da formação encarnada, treinou os juniores e a equipa B do Ah Ahli, nos Emirados Árabes Unidos, e ainda acompanhou Carlos Carvalhal no Sheffield Wednesday e no Swansea. Era precisamente no Swansea – e na Premier League – que Lage estava quando Vieira lhe ligou a pedir uma conversa com o objetivo de acertar um regresso ao Seixal. Depois de pedir uma espécie de bênção a Carvalhal, o treinador voltou ao Benfica para orientar a equipa B: não só pelo “grande respeito e dedicação ao clube e ao presidente” mas também por motivos familiares.

“Pagava 120 milhões para ele não ir”, garantiu Bruno Lage sobre João Félix

Recusando a ideia de ser “um exemplo” para treinadores da formação porque “não é o primeiro a subir das camadas jovens para equipas principais”, avançando depois os nomes de José Mourinho, André Villas-Boas e Vítor Pereira, Lage aceita, ainda assim, a ideia de que é “caso único” porque percorreu todos os escalões e chegou ao setor profissional para ser campeão nacional no primeiro ano. Sobre a próxima temporada, o técnico garantiu que três jogadores da equipa B vão integrar a pré-época do plantel principal – não revelando quais, desde já, porque quer ser ele próprio a falar com eles primeiro – e que as lacunas do Benfica continuarão a ser ultrapassadas com soluções de dentro antes de olhar para fora. Sem confirmar ou negar as negociações por Cillessen, guarda-redes do Barcelona que os desportivos dão como certo na Luz, Bruno Lage colocou em prática a teoria que tinha desfiado momentos antes: “Nós temos o Ivan [Zlobin]. O Ivan ainda não jogou. Antes do resto, temos o Ivan”, referindo-se ao jovem russo que foi titular indiscutível da equipa B na primeira parte da temporada e ocupou o lugar de terceiro guarda-redes quando Bruno Varela foi emprestado ao Ajax.

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Entre mais tática e menos tática, mais FC Porto e menos FC Porto, a conversa ia fluindo mas desaguava sempre no mesmo lugar: João Félix. Sobre se pagava 120 milhões pelo jovem jogador, o treinador do Benfica foi irónico mas sincero na resposta. “Pagava isso para ele não ir”, disse o treinador, explicando depois que mais do que um desejo, a ideia de que Félix deve permanecer em Portugal e na Luz é um conselho. “Acho que ele fez uns quatro, cinco meses muito bons. Foi uma meia época fantástica mas acho que deveria consolidar mais a sua posição – até na Seleção – e depois dar um passo ainda maior na sua carreira. E falo pelo meu exemplo: eu saí com 35 anos para fora e custou-me foi difícil, por isso acredito que não seja fácil para alguém de 18, 19 anos. Chegar lá, um clube novo, ter de provar como fez aqui…são decisões. Primeiro tem de existir um clube que tenha capacidade de o comprar, mas acredito que podia dar passos seguros como outros, ter um percurso mais sólido, jogar mais jogos”, defendeu Lage, recordando depois o percurso de Gaitán, que saiu do Benfica para o Atl. Madrid e acabou por considerar “um passo atrás” a ida para Espanha.

O treinador encarnado garantiu que a decisão mais difícil que teve de tomar foi a de não dar minutos no Campeonato a Yuri Ribeiro e Ivan Zlobin

Sobre Jonas, o treinador deixou escapar que terá de “pagar uma promessa” se o brasileiro não terminar a carreira no final desta temporada. “Antes de ir de férias, disse-lhe que o que quero mesmo é que esteja sempre feliz entre nós, que foi também o que lhe disse no primeiro dia como treinador principal do Benfica”, adiantou Lage, confirmando também que gostaria de ver Jonas integrar a estrutura encarnada. Depois de defender que o FC Porto fez uma “época à FC Porto”, parafraseando Sérgio Conceição, e de negar qualquer demérito dos dragões na conquista do Campeonato por parte do Benfica, o treinador confessou que admira Héctor Herrera e não se coibiu nos elogios ao mexicano. “O Herrera faz tudo. Constrói, cria, marca golos, pressiona e corre 90 minutos. Foi o jogador que mais me impressionou porque dá uma dimensão muito grande ao FC Porto. Não o conheço pessoalmente mas deve ser um enorme líder”, atirou Bruno Lage. Por fim, o técnico revelou ainda “a decisão que mais custou” desde que substituiu Rui Vitória: e nada tem que ver com Jonas, Félix, Seferovic ou com dar primazia às competições internas face às europeias. Para Lage, a decisão mais difícil de tomar foi deixar Zlobin e Yuri Ribeiro fora da convocatória para o último jogo, com o Santa Clara, e não dar minutos aos dois jogadores, que acabaram por não jogar da edição da Primeira Liga que terminou no fim de semana passado. “Achei que se os pusesse e tirasse outros dava a ideia de que já estava feito. E não queria dar a ideia de que já estava feito. Mas custou”, garantiu o treinador.

Como última ideia, Bruno Lage voltou a ter um discurso pedagógico e que já mereceu a previsão de que será político em anos futuros. “Se calhar até é bom explicar uma história, uma mensagem, que não ficou muito bem explicada. Eu em jeito de brincadeira falei nas amolgadelas no carro. E ao longo dos anos estas histórias foram aparecendo. Quando se ganha, destrói-se um balneário, destrói-se ali, destrói-se acolá. Se nós abrirmos essa porta, ‘ah e tal ele ganhou o prémio, partam-lhe o carro que ele tem dinheiro para comprar outro’…é essa pedagogia que temos de fazer. Se eu a ganhar permitir tudo, quando perder também vêm cá partir tudo. Tem que existir equilíbrio. Quer no futebol, quer na sociedade. São esses exageros que temos de evitar”, concluiu o treinador do Benfica, que se despediu e repetiu que agora só o veremos “na rua, de chapéu, óculos e bigode”.

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