Enviados  a Estrasburgo

Quer ser a primeira mulher a liderar a Comissão Europeia, mas a nomeação da alemã Ursula von der Leyen está longe de estar garantida. Aliada de Angela Merkel (era sua ministra da Defesa), e odiada pelos socialistas alemães e pelos grupos parlamentares europeus da esquerda ecologista e radical, Von der Leyen precisa de 374 votos na votação desta tarde para conseguir suceder a Jean-Claude Junker na presidência da Comissão. Só que o seu nome não tinha sido o indicado pelo PPE (a família política mais votada nas Europeias de maio tinha escolhido Manfred Weber) para o cargo. Por isso, Ursula von der Leyen não fez campanha para estas funções. Há duas semanas, contudo, acabou por ser o nome escolhido como parte de um acordo mais amplo entre os Estados-membros para os cargos de todo das instituições europeias. Problema: duas semanas chegam para convencer os eurodeputados? Vai conseguir?

É a pergunta para um milhão de euros. Na manhã desta terça-feira começou a maratona, com a candidata à presidência da Comissão Europeia a discursar perante os eurodeputados e a responder a rondas de esclarecimentos. Num discurso considerado “inspirador” por Paulo Rangel e “excelente” pelo antigo primeiro-ministro finlandês e potencial spitzenkandidat vencido por Weber no PPE, Alexander Stubb, Von der Leyen debruçou-se sobre vários temas, da política fiscal às migrações, passando pelo Brexit, pelas alterações climáticas e pela igualdade de género, e piscou o olho a quem mais precisa: aos socialistas, aos liberais, e até aos Verdes (que registaram evoluções no discurso, mas ainda não saíram convencidos).

A urgência climática. Europa deve ser o primeiro continente a atingir a neutralidade carbónica em 2050

Ursula Von der Leyen foi ao encontro das exigências de várias bancadas relativamente a um combate (urgente e efetivo) às alterações climáticas. “Temos de ir mais longe, devemos esforçar-nos mais”. A candidata a presidente da comissão europeia quer “reduzir as emissões de carbono em 50, senão mesmo 55%, até 2030”. A União Europeia deverá também, defende Von der Leyen, “conduzir as negociações internacionais” para aumentar “o nível de ambição de outras grandes economias até 2021”. Porque para este combate, avisa, não basta ser “ambicioso em casa”, é preciso uma ação global.

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Para mostrar a urgência, como os ecologistas exigem, Ursula promete um “Green Deal” para a Europa nos primeiros 100 dias no cargo e apresentará “a primeira lei europeia de sempre sobre o clima”, que terá como objetivo chegar às emissões de carbono zero em 2050. Isto, explica, exige um grande investimento. O público “não será suficiente”.

Nesse sentido, Von der Leyen propõe um Plano de Investimento para uma Europa Sustentável e promete transformar partes do Banco Europeu de Investimento num Banco do Clima. Na próxima década, prevê a candidata, isso significará um investimento de um bilião de euros (um milhão de milhões).

Brexit. Um amigo e um adiamento (se necessário)

“Não é possível falar de Europa, sem falar dos amigos, em especial dos nossos amigos do Reino Unido”, por isso, Ursula Von der Leyen dedicou ao Brexit uma parte central do seu discurso, lembrando que “pela primeira vez, em 2006, um país decidiu abandonar a União Europeia”. “Uma decisão muito séria”. Da bancada do partido do Brexit ouviram-se aplausos e Nigel Farage bateu com a mão na mesa em jeito de pateada, enquanto sorria. Mas Von der Leyen “respeita” a decisão do Reino Unido, embora a “rejeite”, isso é ponto assente.

Primeira promessa: como respeita a decisão, a candidata à presidência da Comissão Europeia diz que está “disposta a aceitar uma extensão do tempo de saída do Reino Unido se for necessário”. Novos aplausos na sala, e apupos da bancada de Farage. Von der Leyen elogiou depois os esforços do governo de Theresa May para uma saída ordenada e disse que uma das suas prioridades no processo de saída do Reino Unido é assegurar a paz e a estabilidade na Irlanda e Irlanda do Norte. Outro ponto assente: “O Reino Unido permanecerá como aliado, parceiro e amigo”, independentemente do desfecho que o processo venha a ter.

Sem surpresas, Nigel Farage não gostou do discurso da candidata, que apelidou de “fanática” e de ter uma agenda “comunista”. E chegou mesmo a agradecer-lhe o facto de ter feito, com este discurso, “o Brexit muito mais popular no Reino Unido”. “Graças a Deus que estamos de saída”, disse ainda. Mas a resposta surgiu à altura: “Acho que conseguimos sem si, Mr. Farage”.

Uma conferência de dois anos e o reforço do Spitzenkandidat (uma piscadela aos liberais)

A candidata a presidente da comissão, lembrou que, quando chegou a Estrasburgo há 13 dias, prometeu que chegava “para ouvir”. Depois do que ouviu, conta, tomou as suas decisões. Von der Leyen referia-se a uma das exigências dos Liberais: uma grande conferência para ouvir os cidadãos europeus.

A candidata promete que “em primeiro lugar”, quer que “os cidadãos europeus desempenhem um papel proeminente e ativo na construção do futuro da União Europeia”. Isso, explica, indo ao encontro da reivindicação liberal, passa por terem “uma palavra a dizer numa conferência sobre o futuro da Europa, que começará 2020 e que será realizada durante dois anos“. Depois, Von der Leyen quer trabalhar com o Parlamento Europeu para reforçar o processo do spitzenkandidaten (escolha do candidato à Comissão), de forma a que se torne “mais transparente para o eleitorado“. Foi o desrespeito por este processo, aliás, que lhe permite estar ali. Além disso, pretende implementar as “listas transnacionais” ao Parlamento Europeu como “instrumento complementar da democracia europeia”.

Apoia “o direito de iniciativa do Parlamento Europeu“. E prometeu mesmo: “Quando esta casa, deliberando por maioria dos seus membros, adota resoluções solicitando à Comissão que apresente propostas legislativas, comprometo-me a responder com um ato legislativo no pleno respeito do proporcionalidade, subsidiariedade e melhores princípios legislativos. Estou convencido de que um reforço da nossa parceira ajudará ainda mais a fazer com que as vozes das pessoas sejam ouvidas.”

O subsídio de desemprego europeu no cortejar do voto socialista

A candidata a presidente da comissão pisca o olho aos socialistas ao incluir nas linhas do seu programa propostas que estavam no programa de Frans Timmermans, o candidato socialista a presidente da Comissão Europeia.

Desde logo, disse que, no contexto de uma economia social de mercado, “todos os trabalhadores a tempo inteiro” na Europa devem ter um “salário mínimo digno“. Isso, defende, deve passar pela negociação coletiva de contratos de trabalho que passe pelos sindicatos em cada país.

Von der Leyen defendeu também um regime de “subsídio de desemprego europeu” que seja um reforço do subsídio de desemprego nacional num tempo em que as economias passam por dificuldades. E, para sarar as feridas da austeridade, uma promessa: “Quero uma melhor proteção para aqueles que perdem os seus empregos quando a economia leva um golpe severo.” Mais uma proposta que constava do programa de Timmermans, como o próprio já fez questão de registar. Houve deputados a acusar Von de Leyen de apresentar o programa do holandês.

A candidata está também preocupada com o desemprego juvenil, que alerta que é de “14,2% Europa, mas varia de 5% a 40% em alguns países.” Prometeu apoiar a ideia do Parlamento Europeu de “triplicar o orçamento do Erasmus + no próximo orçamento”. Em mais um piscar de olho aos socialistas — embora essa seja também uma intenção do PPE e da comissão Juncker — Von der Leyen defendeu que se devem cobrar taxas às grandes multinacionais tecnológicas.

Paridade total no colégio de comissários. Pedro Marques em causa?

A igualdade de género foi outro ponto central do discurso da candidata a presidente da Comissão Europeia, onde Von der Leyen prometeu paridade total no seu executivo comunitário. “[Nós as mulheres] representamos metade da população, por isso queremos a nossa parte justa”, disse, entre fortes aplausos. Mais: defendeu que a União Europeia se deve juntar à Convenção de Istambul para combater a violência contra as mulheres e a violência doméstica (que devem entrar na lista dos crimes europeus de acordo com o Tratado).

A paridade, diz, deve ser total, e cabe à Comissão Europeia dar o exemplo. “Vou começar em casa, assegurar igualdade de género total no meu colégio de comissários”. E explicou como não vai ceder neste ponto: “Se os Estados-membros não propuserem comissárias femininas em número suficiente, não hesitarei em pedir novos nomes. Desde 1958 tem havido 183 comissários, e apenas 35 foram mulheres. Isto é menos do que 20%”, disse, pedindo uma parte justa para as mulheres.

Um ponto de honra que deixa alguns chefes de Estado numa posição delicada. É o caso do primeiro-ministro português, António Costa, que aposta em Pedro Marques para a Comissão, ansiando trazer uma pasta forte para Portugal (eventualmente ao nível orçamental e financeiro, como a pasta dos Fundos Europeus). Mas se Ursula von der Leyen exigir uma mulher, a escolha inicial de Costa pode ficar condicionada.

Migrações. Um refugiado em casa para dizer que “temos o dever de salvar vidas”

Foi o momento mais pessoal do discurso. Para falar de refugiados e migrações, Ursula von der Leyen contou uma história pessoal que disse ser uma história sobre “perspetiva”. “Há quatro anos, tive a sorte de acolher um refugiado de 19 anos, da Síria, na minha casa de família. Ele não falava alemão, e estava profundamente traumatizado pela sua experiência na guerra civil do seu país. Hoje, quatro anos depois, é fluente em alemão, em inglês e em árabe. É líder de uma comunidade, de dia, e estuda à noite. É uma inspiração para todos nós. Mas um dia, ele sabe que quer voltar para casa”.

Foi assim que Ursula pediu “solidariedade” na Europa. E foi assim que defendeu um sistema de asilo mais moderno e verdadeiramente comum. “O Sistema Europeu de Asilo Comum deve ser isso mesmo — comum”, disse, defendendo que “só podemos ter fronteiras externas estáveis se ajudarmos devidamente os Estados membros que, por causa da sua localização no mapa”, enfrentam maior pressão no dever de acolhimento dos refugiados, disse.

Mas antes, no Mediterrâneo, que se está a tornar uma das fronteiras mais mortíferas do mundo, o dever “é salvar vidas”, defendeu, pedindo “corredores humanitários” em cooperação com o organismo da ONU para os refugiados.

O Observador viajou para Estrasburgo a convite do Parlamento Europeu