São um bando de miúdos rufias do rock. Deve ser giro vê-los correr os pubs ingleses  “wearing trouble on their shirts”, como cantava Bruce Springsteen em “Working on the Highway”. Essa canção não era sobre eles — têm ar de quem não era nascido em 1985 –, mas talvez fosse sobre tipos como eles: comuns, com ar de estarem habituados às dureza do dia-a-dia, a não terem nascido em berço de ouro, a descarregarem as revoltas todas no que podem: as guitarras, o microfone e a bateria. São cinco rapazes destemidos e sem vergonha nenhuma, embora respondam pelo nome de Shame.

A fórmula musical, inspirado no rock-desfibriilhador do pós-punk, é tão simples quanto clássica. É o chamado “desenrasca”, não há virtuosismos nem estudos clássicos para ninguém, parece mais provável que tenham pegado nos instrumentos e toma cá disto, siga para a garagem berrar e tocar contra tudo o que aflige.

O vocalista, Charlie Steen, tem ar de bom diabo, sorriso de esgrouviado, haveria de prová-lo durante o concerto. Começou de óculos escuros na cara, a olhar nos olhos o público que estava junto ao palco principal do Super Bock Super Rock, então ainda com o sol a brilhar (estava pouca gente, sintoma do que se seguiria por todo o recinto até à madrugada). E gritava “what you see is what you get” com aquele sotaque britânico nada disfarçado.

Apesar dos poucos espectadores, bastante menos do que o que tiveram por exemplo em Paredes de Coura, no verão passado, com os Shame não há concertos para cumprir calendário. Era preciso aquecer os ânimos para mais tarde os incendiar e o frontman desfez-se em elogios — “you look so beautiful so goddam perfect”, lá de cima pelos vistos parecíamos “lindos como a porra”. Charme britânico. Eles são os Shame, diziam. Vieram do “sul de Londres” e querem, dizemos nós, conquistar o mundo sem floreados pop.

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A tensão e o nervo (dois segredos do êxito do pós-punk de Manchester, que tão bem devem conhecer) ouve-se neles permanentemente, nas guitarras, no baixo e na bateria. Ainda o concerto ia na ponta final e já cerveja voava vinda sabe-se lá de onde. Com o tempo, o vocalista descompôs-se, abriu a camisa até a atirar fora, tirou os óculos escuros, gritou que se fartou aquelas canções urgentes que não pedem licença para rasgar e pontapeou uma garrafa de água molhando toda a gente cá em baixo. O baixista acompanhou-o. Pontapeou o ar, atirou cabos de microfone de um lado para o outro, obrigou um técnico a correr aflito pelo palco para tentar segurar os estragos e montar tudo novamente.

Eles riam-se, continuavam sem travões, dispararam o single “One Rizla” que alguns conheciam e cantaram, talvez a canção de todo o alinhamento com melhor rácio força-melodia. Daí em diante, o público que tinham pela frente, já mais volumoso, estava mais do que rendido. E o vocalista acelerou, atirou-se para cima das pessoas, fez crowdsurfing, bateu no peito estilo Tarzan, correu pelo fosso, foi gritar aos ouvidos de quem estava ali a vê-los. Lá está: um bom diabo à frente de uma banda de putos inquietos e desassossegados, todos com sangue a ferver no corpo, pose mal comportada de quem quer seguir os passos dos compatriotas Idles, mas com o seu próprio caminho.

Foi bonito, ainda que tenha parecido deslocado. Quem foi ver Kaytranada e os Phoenix mais tarde não quis grande coisa com eles mais cedo (houve algumas dezenas de exceções à regra, é certo) e o festival está mais virado para a pop eletrónica animada e ligeira dos dois primeiros dias e para o hip-hop na madrugada do segundo e de todo o terceiro, do que para o rock. Mas esta pandilha de miúdos não se deu por derrotada e ainda haveremos de ouvir falar mais dos Shame, se a energia mostrada em palco e no primeiro disco (editado em 2018) forem transpostas para o próximo álbum. Até lá, é guardar na memória aqueles sorrisos diabólicos, a certeza de que num concerto rock é importante sentir isto: que durante uma hora tudo pode acontecer.