— Isso é mentira!

A afirmação saiu convicta da boca de Maria dos Anjos Rodrigues, 68 anos, logo após ouvir da juíza que estava a ser julgada por um crime de incêndio a 15 de outubro de 2017 — que reacendeu e depois consumiu parte do Pinhal de Leiria — e ainda antes de a magistrada lhe dizer que podia remeter-se ao silêncio, porque não seria prejudicada por isso.

Numa sala do rés do chão do Tribunal de Alcobaça, de pé, corpo franzino vestido por um casaco de fazenda cinzento e cabelo desalinhado, Maria dos Anjos começou nervosa a responder à juíza Ana Sofia Castelhano sobre a sua identificação, esta quinta-feira. Mas mal chegou ao momento de defesa, não hesitou contar que, naquela madrugada, foi acordada por uma vizinha que a alertou para o fogo.

Da sua memória, era uma noite quente em que dormia de cuecas e soutien. Acordou com a vizinha a bater-lhe à janela. Segundo ela, como sofre de “problemas oncológicos” e tem dificuldade em equilibrar-se, demorou alguma tempo a levantar-se e a reagir. Depois de responder à vizinha, telefonou ao filho, bombeiro, e alertou-o para o fogo. Vestiu o pijama e foi abrir o portão da casa. Por indicação dele, permaneceu dento da “pequena” moradia.

— Xana, Xana, sai de casa que está ali o fogo, disse a vizinha Leonor

Não tão certa no discurso foi a vizinha Leonor. Chamada a depor em tribunal, começou por dizer que, naquela madrugada, pelas 6h00, acordou com a voz de um homem que chamava os bombeiros por causa de um fogo. Levantou-se, saiu de casa e viu um casal. O fogo estaria no terreno contíguo à propriedade de Maria dos Anjos, mesmo junto ao muro.

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Leonor, a única vizinha de Maria do Anjos, no Beco da Longa, na Burinhosa, Pataias, correu para ir chamar a vizinha. Chamou-a insistentemente, bateu à porta, depois à janela, e só depois teve uma resposta de “Xana”, como é conhecida na zona. O que relatou de seguida, no entanto, divergiu com o que disse à PJ meses após o fogo. Perante o tribunal, e de costas para a arguida, disse desconhecer se a vizinha tomava alguma medicação para dormir.

O procurador do Ministério Público, Tiago Castelo, insistiu na pergunta e acabou por confrontá-la, com autorização da juíza, com o que tinha dito à PJ em fase de inquérito: que não estranhara a demora de “Xana” a responder-lhe, uma vez que ela era uma pessoa doente, sofria de problemas “de alcoolismo” e tomava comprimidos para dormir.

Foi precisa alguma insistência até a testemunha admitir que, de facto, chegou a ver Xana alcoolizada várias vezes. “Mas a senhora anda de noite alcoolizada pelo quintal? Anda a fumar pelo quintal? Poderia ter lançado a beata para o outro lado do muro?”, insistiu o procurador. “Eu nunca vi. Não posso dizer isso”, afirmou, depois de confirmar que a arguida fumava, e que antes do fatídico dia costumava fazer queimadas com o companheiro — falecido antes do fogo que acabou por reacender e alastrar ao Pinhal de Leiria.

O procurador também já tinha perguntado à arguida se ela tomava comprimidos para dormir, por considerar uma questão relevante para apurar se foi ela que naquela madrugada ateou ou não o fogo. Ela disse que não.

Então o que fez o dia anterior?, perguntou-lhe o procurador

Fiz o mesmo de sempre: nada. Não posso fazer nada, passo os dias em casa. Às vezes vou ao café beber um descafeinado. Vou duas ou três vezes  por mês a Lisboa por causa da doença, respondeu Maria dos Anjos.

Depois de irritar o procurador, foi a vez de a testemunha Leonor irritar o advogado de defesa. “Mas como é que pode afirmar que a sua vizinha é alcoólica?”, quis saber o advogado, lembrando o frágil estado de saúde da sua cliente — que terá um cancro na garganta há já sete anos. Para descredibilizar a testemunha, João Barata Inácio lembrou que as duas vizinhas já se tinham confrontado em tribunal antes, num processo movido por Maria dos Anjos contra Leonor. Leonor não quis falar sobre isso, mas abalou assim o que tinha dito antes: que de vez em quando frequentava a casa da vizinha e ela a sua.

PJ acredita que Xana mandou uma beata para o silvado

Antes do conturbado testemunho de Leonor, tinha sido o inspetor João Francisco a falar por videoconferência. Ao Ministério Público explicou que chegou ao terreno dias após o fogo. E que foi ali, junto ao muro da casa de Maria dos Anjos, que encontrou o ponto onde começou o fogo que seria dominado pelos bombeiros depois de queimar 200 metros, e que terá reacendido à tarde dando origem a um dos fogos que consumiu parte do Pinhal de Leiria naquele outubro.

Maria dos Anjos responde apenas pelo primeiro fogo, o Ministério Público considerou que o segundo se deveu às condições meteorológicas, não a responsabilizando por isso. “Não pode o reacendimento ser juridicamente imputado à ação inicial da arguida”, considerou.

O inspetor da PJ descreveu o terreno onde terá começado o fogo como uma zona de silvado, de difícil acesso, só possível de atear através da propriedade da arguida. “Ficou logo a hipótese de ter sido uma queima feita pelo lado da propriedade da arguida, junto ao muro do lado exterior”, testemunhou.

O procurador quis saber se não havia um outro caminho perto desse ponto, através do qual outra pessoa pudesse aceder e atear o fogo, mas o inspetor manteve a sua tese — a mesma que motivou a acusação.

A arguida pode ter atirado uma beata pelo muro para o silvado, mas isso não foi detetado, o que é normal, disse o inspetor da PJ.

Já depois de o advogado de defesa ter tentado desconstruir a forma de investigação de um fogo levada a cabo pelas autoridades, o procurador perguntou ao polícia se teria encontrado no local alguma beata de um cigarro. O inspetor disse-lhe que não, mas que tal não significava que o fogo não tivesse sido ateado por uma beata que acabou consumida pelo fogo.

Sobre a forma como concluiu que as chamas deflagararam exatamente ali: “é pelo vestígio da carbonização, é uma analise que é feita pelos policias que têm uma formação para fazer análise da progressão do fogo”.

Os mistérios da hora do fogo e da mulher que esteve lá perto

Uma das dúvidas que o Ministério Público não conseguiu ver esclarecidas foi as horas a que tudo aconteceu. A arguida diz que foi acordada pelas 06h25 pela vizinha Leonor. A vizinha Leonor diz que ouviu a voz do homem que chamou os bombeiros pelas 6h00 e o homem que chamou os bombeiros, que todos conhecem por “Michel”, tem “quase a certeza” que pouco passava das 6h00 quando ali passava de carro, se apercebeu do fogo e parou para chamar ajuda.

— Eu tinha ideia que era as 6h00, que era noite escura. Eu fiz a chamada, o senhor da Judiciária disse que eu tinha sido o primeiro a ligar para o 112, diz Miguel Marques, que todos conhecem por Michel.

No entanto, de acordo com o relatório da PJ — que usa as horas que constam nos registos dos bombeiros — alguém chamou os bombeiros às 6h54. E eles chegaram às 7h15.

Outro dos mistérios que parece estar por resolver é o da identidade da mulher que tanto Michel como Leonor garantem ter visto ali perto do local onde deflagrou o fogo. Leonor diz que viu Michel acompanhado de uma mulher a chamar os bombeiros. Michel, por seu turno, diz que quando parou o carro apareceu “uma mulher jovem” que também deu conta do fogo e que estava a tentar obter um número de telefone para chamar as autoridades.

Mas essa mulher apareceu de onde? Vinha a pé, de carro, de bicicleta? Não achou estranho aquela hora da manhã?, perguntou o advogado de defesa.

Aquilo era domingo de manhã, apareceu lá pessoal que ainda não tinha dormido. E depois começou a chegar gente, foi tudo muito rápido, disse Michel.

O advogado não ficou convencido, mas também não conseguiu esclarecer a dúvida.

O julgamento prossegue a 23 de outubro. Ao contrário do que a defesa pretendia, juiz e procurador do Ministério Público não vão deslocar-se ao local onde tudo aconteceu.