A procuradora-geral da República (PGR) alertou esta terça-feira para o impacto que a violência doméstica tem na vida de milhares de crianças e jovens, podendo tornar estas vítimas em possíveis agressores pelo efeito de uma transmissão intergeracional.

Na opinião de Lucília Gago, a violência doméstica é um “fenómeno social grave, complexo e altamente impactante na vida de milhares de adultos, mas também na vida presente de futura de milhares de crianças e jovens”. A magistrada avançou que, só este ano de 2019, já se registaram 31 vítimas mortais em contexto de violência doméstica (25 mulheres e cinco homens e uma criança).

A falar na abertura da conferência internacional “Violência Doméstica: O papel dos advogados”, em Lisboa, organizada pelo Conselho Regional de Lisboa da Ordem dos Advogados, a PGR chamou a atenção para o facto de o fenómeno poder condicionar “fortemente” a saúde física e mental das crianças e jovens vítimas, além do seu comportamento futuro, “penalizando indelevelmente o seu processo de crescimento e de desenvolvimento”. Como consequência, sublinhou Lucília Gago, poder-se-á estar perante uma possível propagação da violência doméstica, de geração em geração.

O ato favorece a propagação, por mimetismo, da violência, mormente da violência doméstica, o que agrava o seu efeito de banalização e da sua difusão por transmissão intergeracional com terríveis consequências no tecido social”, sublinhou, defendendo a necessidade de quebrar o círculo vicioso da persistência do fenómeno.

Lucília Gago defendeu que é preciso “implementar melhores abordagens” que contribuam para a inversão do fenómeno e admitiu que “são múltiplos os questionamentos e perplexidades provenientes do choque perante a crua luz da realidade”.

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Referindo-se novamente às crianças e jovens, a PGR apontou que, mesmo quando não são alvos diretos, acabam sempre por ser afetados emocionalmente “de forma muito séria” e que o dano provocado “nem sempre é valorizado”.

Referiu os projetos piloto que o Ministério Público (MP) está a implementar de ataque à violência doméstica, com as secções especializadas integradas de violência doméstica (SEIVD) que começaram a ser testadas, em janeiro, em três comarcas, e deixou a garantia de que o MP “permanece fortemente empenhado na defesa do superior interessa da criança”.

Já o presidente do Conselho Regional de Lisboa da Ordem dos Advogados, António Jaime Martins, apontou que se está “muito longe de uma solução ideal para as vítimas” e defendeu a existência de um gabinete ministerial que congregasse os melhores meios de apoio às vítimas.

A deputada socialista Elza Pais, enquanto moderadora, destacou também que em 2019 já foram assassinadas 25 mulheres em contexto de homicídio conjugal, apontando que se trata de um “fenómeno de terrorismo doméstico de género, uma das maiores calamidades dos últimos dez anos, que deixou muitas crianças órfãs, mas também assassinou cerca de 500 mulheres”, sublinhou.

Não há maior calamidade do que esta e, por isso, é urgente decretar-se emergência social, política, a todos os níveis, para prevenirmos e combatermos este grande flagelo”, defendeu.

Disse também que é preciso deixar de desvalorizar este tipo de crime e criticou que continue a existir na sociedade portuguesa um “forte sentido de impunidade”, dando como exemplo “as baixas taxas de condenação” de agressores.

“Se for apanhado a furtar um carro, é detido. A bater na mulher, é difícil.” Comissão critica combate à violência doméstica em Portugal

A presidente da Comissão para a Cidadania e a Igualdade de Género (CIG), Teresa Fragoso, salientou que não há uma só solução para este problema e que é preciso um trabalho continuado em matéria de educação. Por outro lado, e a título estritamente pessoal, defendeu que o ónus deveria estar no agressor e não na vítima, o que, nos casos de agressão, obrigaria ao afastamento do agressor e não da vítima do seu local de residência.

Referiu também que apesar de haver cada vez mais investigações abertas por casos de violência doméstica, o número de casos que chega a tribunal e que depois são condenados é mínimo, questionando se a moldura penal seria a mesma se a maioria das vítimas de violência doméstica fosse homens.

Para o coordenador da Equipa de Análise Retrospetiva de Homicídios em Violência Doméstica, Rui do Carmo, no entanto, antes de muitos dos homicídios registados houve já inquéritos abertos contra os agressores que não chegaram a ser investigados, por isso o crime não foi travado quando poderia ter sido. “Temos um número assustador de inquéritos de violência doméstica, exatamente porque não investigamos a violência doméstica”, criticou.

(Artigo atualizado às 15h10 de 30 e outubro com o número de vítimas mortais em casos de violência doméstica avançado pela Procuradora-Geral da República e com uma declaração de Rui do Carmo).