Uma das questões intelectuais mais importantes do século XVIII, a querela entre Antigos e Modernos, versou principalmente sobre a questão da moral. O problema que entreteve Desmarets, Perrault e toda a Academia Francesa consistia, basicamente, numa divergência sobre o valor da moral cristã. Era esta um aperfeiçoamento da virtude que os Antigos sempre conheceram, ou uma moral completamente diferente? Isto é, só a revelação cristã permite perceber a verdadeira virtude, e consegue ver todo um novo código de conduta à luz de Cristo, ou a sabedoria dos Antigos pode ser vista como um sinal da posterior revelação?

A querela teve ecos prolongados e acaba por ter um desenvolvimento interessante, embora não explícito, nos contos de Sophia de Mello Breyner. É certo que a poesia é que a tornou famosa e que ocupa grande parte da atenção crítica; no entanto, os seus contos são uma ferramenta excelente para perceber a mundividência moral de Sophia. Todos conhecemos os temas dilectos da autora: o fascínio pela Grécia, o espanto diante do mar, o maravilhamento com as tradições da alegria cristã, um certo amor pela luz e pela infância, tudo isto povoa os contos de Sophia, sejam os infantis, sejam os Contos Exemplares; no entanto, todos estes temas trazem uma certa significação moral que não é fácil conjugar.

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Da Grécia, vem um certo encanto pela virtude, pela rectidão e pela inteireza que são próprios do modelo heroico; e, de facto, nas personagens de Sophia, mesmo nas mais burguesas, há sempre uma forte relação com a virtude; seja a honestidade inquebrável do comerciante Hans, seja a inteireza de um cavaleiro nórdico; esta virtude tem sempre uma solidez admirável, quase distante, mas não é propriamente cristã. Há, aliás, dois casos paradigmáticos desta diferença entre aquilo a que Pascal chamou o amor cristão e a virtude estóica: o caso de Hans, em que a virtude é mais sintoma de desencanto e desapego com o seu mundo do que sinal de grande fortaleza moral, e o caso de o Jantar do Bispo, em que a virtude dos anfitriões é sincera e verdadeira, mas fria a ponto de não ser cristã.

Este é, aliás, um dos grandes temas morais de Sophia de Mello Breyner: a ideia de que Cristianismo e virtude não são a mesma coisa é radical e presta-se a bastantes equívocos. O que está em causa não é propriamente uma denúncia da hipocrisia, ou a ideia de que os cristãos não fazem verdadeiramente aquilo que pregam. A ideia é mais simples e mais profunda: em primeiro lugar, o que Sophia pretende demonstrar é que a virtude implica um esforço, sim, mas que não está necessariamente relacionada com o amor. O homem virtuoso pode ser sério e até generoso, pode sê-lo contra todas as tentações, mas isso não implica que o Cristianismo e o amor tragam um desconforto às suas vidas. A virtude é uma educação de si-próprio, e por isso louvada por Sophia, com a mesma admiração que lhe merece a grande arte renascentista e tudo aquilo que enobrece o Homem; mas o amor Cristão, porém, não é sobre nós mas sobre os outros. A ideia de justiça em Sophia é muito forte porque implica a ideia de que a justiça, enformada pelo amor, exige que o outro esteja acima de nós. É, portanto, perfeitamente possível ser virtuoso sem ser justo, e ser justo sem ser virtuoso. O conflito que Sophia traça entre a virtude e a justiça ou o amor não se reduz à ideia de hipocrisia, implica que duas coisas que têm, muitas vezes, consequências iguais são, na raiz, completamente diferentes.

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Há outro aspecto moral, porém, que os contos de Sophia põem em evidência. Vemos nos Três Reis do Oriente, ou na Noite de Natal, por exemplo, que há dois tópicos fundamentais na sua mundividência. Em primeiro lugar, a ideia de imensidão, que também é muito explorada na sua relação com o mar; o fascínio por aquilo que é grande, distante, ou antigo, maior do que as nossas vidas, tem em Sophia um poder irresistível. Mais do que a ideia de tradição, interessa em Sophia o fascínio por aquilo que é maior do que o homem, como aquilo para que o homem está fadado. No entanto, este sentimento, que é constantemente evocado nas grandes cerimónias, no Natal ou nas celebrações de vida, traz sempre consigo uma ideia de alegria e de luz.

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Habitualmente, na filosofia cristã, a luz é definida como aquilo que não se vê mas permite ver; a luz divina não aparece tanto como a luz de uma estrela, mas como a luz do sol, aquilo que dá sentido de uma forma generosa, sem se notar; a luz de Sophia, porém, é muito mais uma luz que se acende e que se vê, quer seja nos faróis do carro no Jantar do Bispo, nas luzes da árvore do Cavaleiro da Dinamarca, ou nas luzes de Natal. A luz de Sophia é uma luz que se acende, é uma luz para os perdidos. A grande sensação que a luz traz, nos seus contos, é o alívio. Sophia é, obviamente, uma escritora da alegria, como mostram as suas deliciosas descrições de festas e celebrações; no entanto, só é uma escritora da alegria porque conhece a sombra. A sua alegria é a alegria dos que fugiram da escuridão, que se encontraram, que foram remidos. E isso dá aos seus contos uma alegria muito mais forte e poderosa, como se, por um segundo, pudéssemos recuperar a infância e percebê-la ao mesmo tempo.