As águas do Minho, partilhadas pelo Norte de Portugal e Galiza, em Espanha, guardam há séculos um “tesouro” feito de pedras transformadas pelo homem em construções de pesca artesanal, que portugueses e galegos querem elevar a património imaterial.

Fronteira natural entre os dois países, o rio Minho concentra no Alto Minho, entre a torre da Lapela, em Monção, e o concelho vizinho de Melgaço, num percurso de cerca de 35 quilómetros, mais de 600 pesqueiras. Na Galiza, as “engenhosas armadilhas” da lampreia, do sável, da truta, do salmão ou da savelha são em “menor número”, estimando-se que, no total, “existirão mais de mil”.

Desde a foz até Melgaço, o peixe vence mais de 60 quilómetros, numa viagem de luta contra a corrente que termina, para alguns exemplares, em “autênticas fortalezas” construídas a partir das margens, “armadas” com o botirão e a cabaceira, as “artes” permitidas para a captura das diferentes espécies. Em fevereiro, a “herança” comum aos dois países vai ser registada. No caso português, no Inventário Nacional do Património Cultural Imaterial e, em Espanha, nas Listas Nacionais de Património Cultural.

O processo da candidatura das pesqueiras a património imaterial é desenvolvido ao abrigo do projeto transfronteiriço Estratégia de Cooperação Inteligente do Rio Minho “Smart_Miño”, cofinanciado pelo Programa INTERREG VA Espanha-Portugal (POCTEP). Para trás ficam mais de dois anos de trabalho de um grupo, constituído por entidades portuguesas e galegas e liderado pelo antropólogo Álvaro Campelo, que resultou no estudo “A Cultura das Pesqueiras do rio Minho”.

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“A inventariação no terreno permitiu-nos ver a complexidade deste património que, sendo material, por se tratar de construções, encerra também um riquíssimo património imaterial desde os saberes, à posse e administração até ao espaço ecológico a que as pesqueiras estão associadas”, referiu o investigador. A sua origem é atribuída por alguns autores aos romanos, mas as “evidências” reunidas no estudo agora concluído, sustentadas em “documentos históricos de partilhas, heranças, doações, sejam de reis, governantes, de conventos ou até da diocese de Tui”, apontam para “a existência das pesqueiras nos séculos VII, VIII e IX”.

O estudo permitiu traçar o rumo das pesqueiras, “desde a construção à propriedade e gestão”, e demonstrou a evolução histórica da “sociedade” e “das relações de poder” que existiriam na região. “As pesqueiras nunca foram recursos de pescadores especializados. Eram camponeses que completavam os recursos da terra com os do rio. No princípio, seriam de pessoas mais poderosas, dos reis, dos senhores da terra, até de conventos e mosteiros por terem a capacidade financeira para pagar a construção”, adiantou Campelo.

Álvaro Campelo explica que as pesqueiras “ultrapassam a paisagem, os saberes, as artes de pesca e o conhecimento do rio e da natureza”. Encerram “dimensão cultural”, por exemplo, através da gastronomia, como é o caso da lampreia, um “valor económico” que pode ser potenciado. A “conjugação dos fatores naturais e culturais” é, para o antropólogo, “um contributo” que pode travar “a desertificação acentuada que a região conheceu nos últimos anos”.

O aproveitamento turístico do potencial das pesqueiras é apontado como “muito importante” para a preservação deste património transmitido de geração em geração, um “bem” que passa de pais para filhos, como se de um testemunho se tratasse. O acesso às “armadilhas” faz-se por trilhos íngremes e sinuosos, cravados nos bosques. Seria assim há séculos e é assim ainda hoje.

António Castro, de 75 anos, é o pescador mais antigo do troço de rio que passa em Alvaredo, Melgaço. Para pescar percorre os mesmos caminhos “há mais de 60 anos”. Herdou a pesqueira dos pais, que a receberam dos avós, e que deixará ao sobrinho Diogo, de 32 anos. “Já lhe disse que tem de pegar na pesqueira. Este ano ainda venho ajudar, mas depois… A idade já é bastante”, confessou.

Diogo Castro recebeu o testemunho do pai e é com “todo o gosto” que irá dar “continuidade” ao do tio António.

No “processo de passagem”, contou Álvaro Campelo, a pesqueira “nunca fica na posse de uma só pessoa”. A sua “administração”, é atribuída a um “patrão” e a utilização definida num “rol” no qual se assentam “os dias, as horas e tempos de pesca”. Os diferentes “donos” dividem a utilização, bem como as suas despesas, como o pagamento do IMI.

Todas as pesqueiras têm nome, como Mata Jesus, Mal Paga ou Esquina, por exemplo, e Diogo Castro e o tio “armam” todos os anos cerca de 10, umas “herdadas”, outras “alugadas”.

Também funcionário público e presidente da Junta de Alvaredo, Diogo Castro é um dos principais impulsionadores da classificação das pesqueiras, considerando que será “um prazer para os pescadores e a forma de lhes dar mais importância”.

Melhorar os acessos às pesqueiras, criar novos trilhos e rotas visitáveis e construir propostas turísticas, associadas à produção do vinho Alvarinho, que atraiam turistas e os conduzam numa viagem ao passado, são ideias que o autarca gostaria de ver postas em prática para “partilhar” o que diz ser “único no mundo”.

A capitania de Caminha, responsável pelo licenciamento e fiscalização das pesqueiras portuguesas, foi chamada a dar o seu contributo para a classificação.

O comandante Pedro Costa aponta o registo das pesqueiras desde 1897, ano do primeiro regulamento de pesca do troço internacional do rio Minho. Desde então, por não ser permitida a construção de novas, “estão registadas 656, mas apenas 161 licenciadas para a pesca”.

Pedro Costa considera “fundamental” a classificação como forma de “potenciar” aquele legado ancestral.

Nas pesqueiras, a faina começa quando as espécies entram no rio, em direção à nascente, para cumprir a fase de reprodução. A partir de 15 fevereiro e até 21 maio, vai voltar a pescar-se lampreia no Minho. A safra continua a partir de 01 de abril e até 01 de junho para as outras espécies que habitam o rio.