Com o país e o mundo (quase) totalmente concentrados no surto do novo coronavírus (Covid-19), o governador do Banco de Portugal, Carlos Costa, foi à Assembleia da República falar sobre um outro “surto”: o “surto” de processos de supervisão e ação sancionatória que existiu nos últimos 10 anos, correspondentes aos seus dois mandatos, e cujo stock foi possível diminuir – o que demonstra o trabalho que tem sido feito pelo Banco de Portugal e que Carlos Costa diz que, um dia, será analisado com mais justiça. Sim, porque, em jeito de despedida (e de aviso ao sucessor), Carlos Costa avisou que “o governador é sempre alguém em quem é bom espetar uns alfinetes“, mesmo quando se tem uma atuação imaculada – que, para Carlos Costa, o Banco de Portugal voltou a ter no caso do EuroBic, que o levou mais uma vez à Assembleia da República.

Esse é um caso em que Carlos Costa acabou por não dar muitas novidades, já que continua em curso a investigação aprofundada que está a ser feita ao EuroBic sobre as operações suspeitas que esvaziaram a conta bancária da Sonangol no banco português – 115 milhões que foram transferidos para uma offshore de uma amiga de Isabel dos Santos. Já passaram mais de dois meses após a notícia do arresto judicial à empresária mas essa averiguação ainda não está concluída: Carlos Costa indicou que até ao final de março o trabalho estará terminado mas não deixou claro se, nessa altura, as conclusões vão ser tornadas públicas.

O que acontecerá quando o relatório estiver concluído, deu Carlos Costa a entender, é que possam surgir novas contraordenações e outras medidas sancionatórias caso se determine que houve conduta imprópria. E tentar determinar se houve, ou não, conduta imprópria, é tudo aquilo que o Banco de Portugal pode fazer, sublinhou Carlos Costa, além de tomar medidas para garantir que os bancos têm mecanismos de controlo adequados. Uma auditoria feita ao EuroBic em 2015 demonstrou que o banco tinha grandes fragilidades nos mecanismos de controlo interno e prevenção de branqueamento de capitais, houve mais de 50 “determinações” (e uma contraordenação) feitas ao banco e, passado alguns meses, uma auditoria externa demonstrou que só cerca de metade estavam a ser cumpridas.

Aí, Carlos Costa diz que tentou “forçar” o conselho de administração do banco a fazer as mudanças que o supervisor tinha exigido – entretanto houve mudanças na administração (Fernando Teixeira dos Santos substituiu Luís Mira Amaral) mas a realidade é que muitas insuficiências se mantiveram. Tanto que, em novembro de 2019, houve nova ação de inspeção que, garantiu o governador do Banco de Portugal, foi decidida e planeada antes das notícias e denúncias vindas a público sobre irregularidades no banco.

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“O BdP trata de forma diligente e sistemática todas as denúncias. Mas não tem de partilhar publicamente ou com o denunciante o resultado do que foi investigado”, argumenta Carlos Costa, depois de Mariana Mortágua, deputada do Bloco de Esquerda que começou os trabalhos a perguntar se a conduta do Banco de Portugal com o EuroBic foi “cumplicidade ou incompetência”, na relação com a “cleptocracia angolana”.

Esta acusação em forma de pergunta de Mariana Mortágua até foi o ataque mais forte de toda a audição. Foi logo na primeira pergunta, mas não teve seguimento nas cerca de duas horas e meia que se seguiram. Aliás, a audição desta quarta-feira foi, em boa medida, um reencontro de Carlos Costa com muitos dos deputados com quem se cruzou na comissão parlamentar de inquérito à CGD na anterior legislatura: de Mariana Mortágua (BE) a Cecília Meireles (CDS-PP); de João Paulo Correia (PS) a Duarte Pacheco (PSD). Só que a intensidade foi muito menor.

Reparos sobre as (supostas) falhas da supervisão houve muitas.”Como é possível que o BdP tenha dado idoneidade a Isabel dos Santos como administradora do EuroBic?”; “Como é que o BdP não se apercebeu das transferências suspeitas [da Sonangol para offshores] em 2017?”; ou sobre a excessiva duração dos processos de investigação conduzidos pelo supervisor. Tranquilo, monocórdico, Carlos Costa ensaiou dois tipos de resposta. A primeira é um “clássico”: o Banco de Portugal tem sido “rigoroso e severo na exigência” face às instituições financeiras. Mas não trava tudo.

Por exemplo, não consegue “supervisionar os milhões de operações que decorrem no sistema. São as entidades que têm de garantir” o cumprimento das regras. E completa: “o Banco de Portugal nunca pode garantir erro-zero quando são decisões tomadas pela própria instituição”. Quando algo suspeito é detetado, como aconteceu no EuroBic, o supervisor tem de analisar a posteriori. No caso do EuroBic, “falta esperar pelo resultado da análise, mas se houver uma conclusão de que não foi respeitada as regras, do ponto de vista do Banco de Portugal coloca-se uma questão contraordenacional”.

A segunda resposta foi um recurso à vitimização, como quando se lamentou que a supervisão é “o bode expiatório ideal” de todos os males. Para o governador, de tempos em tempos os grandes interesses económicos exercem a sua influência sobre os políticos para dizer que as regras são muito custosas e que é preciso mudá-las. “E não têm razão, esta atividade tem de ser exercida por que tem capacidade de cumprir as regras prudenciais. Quem não consegue, não abre portas”.

O governador do Banco de Portugal avisa que a “pessoa que me há de suceder, saberá que sempre que houver um problema o governador é sempre uma figura onde é bom espetar uns alfinetes”. Isso é algo que, acrescenta Carlos Costa, “cria paz de espírito comunitária mas não resolve nenhum problema”.

Reconhecendo que há uma questão de karma quando se fala no escrutínio e responsabilização do governador do Banco de Portugal, quando as coisas correm mal, Carlos Costa diz que “podem ter a certeza que o Banco de Portugal passado 10 anos é muito melhor do que era há 10 anos, organizou-se, adaptou-se, tem gente muito competente e tem gente que tem tido a coragem de enfrentar a nossa tendência para vivermos no outro lado da lua”. “As críticas são-nos feitas, nós aceitamos, aceitamos o escrutínio e não houve um governo tão escrutinado quanto eu, e nunca ouviram uma palavra de enfado para dar explicações”, concluiu.

Houve vezes, porém, em que Carlos Costa não se ficou. Em alguns momentos, contra-atacou. Um dos momentos mais tensos foi com a deputada do CDS-PP Cecília Meireles. A deputada centrista tinha perguntado como era possível que o Banco de Portugal tivesse dado idoneidade a Isabel dos Santos como acionista do então BIC, atualmente EuroBic.

Carlos Costa deu o troco. “Não foi só o Banco de Portugal que deu idoneidade à engenheira Isabel dos Santos. Foi o próprio Estado português quem lhe vendeu posições em empresas públicas”, disse Carlos Costa. Cecília Meireles não insistiu, mas a referência do governador era mesmo para o governo PSD-CDS (do qual Meireles fez parte como secretária de Estado do Turismo).

Foi o governo de Passos que tomou a decisão de vender o BPN, então nacionalizado, a Isabel dos Santos e Fernando Teles, os maiores acionistas do BIC Angola. E fê-lo por pouco mais do que 40 milhões de euros, numa decisão tomada em 2012 que ainda hoje custa dinheiro ao Estado.

Oito anos depois de vender o BPN ao EuroBic, o Estado ainda está a pagar

“Há certas coisas que é melhor não falar em público. Por isso…”, concluiu Carlos Costa, em jeito de alerta. E o tema não voltou.