Situações extremas exigem medidas extremas. Em tempos de pandemia, muitos profissionais de saúde que combatem diariamente a Covid-19 deparam-se com um dilema: devem regressar a casa depois de um dia de trabalho, para junto da família, sob risco de a contagiar? Para lhes dar resposta, vários proprietários de alojamento local ou de casas de habitação desocupadas estão a disponibilizar gratuitamente um teto a médicos, enfermeiros e outros trabalhadores que estejam na linha da frente no combate à Covid-19.

Num grupo de Facebook chamado “COVID19 – Alojamento SOLIDÁRIO para profissionais de saúde“, em apenas 11 horas foram publicadas quase 200 ofertas de proprietários e pedidos de trabalhadores. Há casos de funcionários que preferem separar-se temporariamente da família, apesar do esforço emocional, ou que estão deslocados para reforçar as equipas de saúde e que precisam de um local onde ficar.

Sara Dourado, 36 anos, é enfermeira desde 2007 e divide o tempo entre a atividade numa clínica privada e na gestão de um hostel, em Viana do Castelo, que teve de fechar devido à onda de cancelamentos provocada pela Covid-19. “Tenho o hostel livre e sei muito bem aquilo por que estes profissionais estão a passar. Tenho colegas que estão no hospital completamente desesperados porque têm filhos em casa ou pais que querem proteger”, conta ao Observador. Em poucas horas de anúncio publicado, recebeu dezenas de contactos de enfermeiros.

“Uma pessoa ligou-me porque vive com alguém que esteve a fazer quimioterapia, que tem problemas oncológicos e uma imunidade muito frágil. Ele, profissional de saúde, não quer ser responsável pelo contágio“, diz Sara. Num outro caso, um pai mostrou interesse num quarto no hostel para evitar uma eventual transmissão do vírus aos filhos, pequenos, que ficam ao cuidado da mãe.

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O hostel de Sara, encerrado desde sexta-feira, tem oito quartos — cada um receberá apenas uma pessoa. A cozinha e algumas casas de banho terão de ser partilhadas pelos eventuais novos inquilinos, mas Sara garante-lhes lençóis lavados e produtos de higienização, para que possam desinfetar, cada um por si, os espaços comuns.

A publicação de Sara Dourado no Facebook

Sara não lhes vai cobrar nada. Tal como André Ferreira, 37 anos, que vive entre a Costa de Caparica e o Porto, onde tem duas empresas. Aos seus trabalhadores já pediu para teletrabalharem — e ele faz o mesmo, em Lisboa, com quatro filhos em casa. “Como não tenciono sair daqui tão cedo, pareceu-me que fazia sentido disponibilizar a casa do Porto a um profissional que precise”, explica ao Observador. No fundo, “é como se cedesse a casa a um amigo”.

André Ferreira disponibiliza uma casa, que raramente usa, em Gaia

Um dos contactos que recebeu foi o de um “rapaz que é medico e que está na primeira linha de apoio, num Hospital de Gaia”. “Disse-me que vive a cerca 100 km do hospital e, como faz muito trabalho nas urgências, perguntou se podia usar a casa”. Como vai André certificar-se de que se trata, efetivamente, de um profissional de saúde?

“Estamos num período da nossa vida em que, se não confiarmos nas pessoas… Nem faço esse filtro. O problema aqui é escolher a pessoa que me parece que está mais fragilizada, que mais precisa de apoio”. A casa, um T1 no Porto com espaço para duas pessoas, fica a 10 minutos de carro do Hospital de Gaia. Nela, já sabe, vão ficar duas enfermeiras que trabalham em unidades de cuidados intensivos — uma no Hospital de São João, outra no de Santo António. “Uma vive com a mãe, a outra com a avó. E estavam à procura de um sítio para proteger os seus”.

“De que me serve ter duas casas vazias?”

Em menos de uma hora de anúncio, Hugo Gaspar, gestor de 37 anos, encontrou um inquilino: um médico que trabalha nas urgências do Hospital de São João e que mora com a avó, de 75 anos. “Ele estava com receio de estar em casa com ela. Nas últimas duas noites, até tinha alugado um quarto. Amanhã vou entregar-lhe a chave.”

Hugo mora em Leiria e tem uma casa em Matosinhos, que comprou quando trabalhou no Porto, a um quilómetro do Hospital de São João. “Não estava alugada, só a usava para visitas pontuais ou para os meus amigos. Se não esteve alugada estes dois ou três anos, não ia ser agora.”

Na publicação que deixou na sua página de Facebook — e que mantém “para que outras pessoas possam ser sensibilizadas, tal como eu fui por um amigo” — pode ler-se:

Hugo Gaspar não retirou o anúncio “para que outras pessoas possam ser sensibilizadas”

Em Alfama, Gonçalo Martins, 43 anos, gere duas casas de alojamento local. A quebra na atividade “tem sido total” desde que a epidemia se agravou, conta ao Observador. “Não há hipótese. Quem ainda cá está, está a ir embora, e ninguém está a vir. De que me serve ter duas casas vazias?” Colocou um anúncio nas redes sociais, partilhado por milhares de utilizadores, e já recebeu vários contactos de pessoas a perguntarem “se era verdade”.

Ainda que o intuito do grupo seja disponibilizar casas gratuitamente, Gonçalo, com dois empréstimos ao banco por pagar, está a sugerir aos eventuais inquilinos que “paguem o que puderem pagar”. “Claro que se for um auxiliar de ação médica que vem de Beja para aqui, e que ganha 500 euros por mês, não vou pedir nada. Tenho conhecimento das dificuldades que existem”, acrescenta.

Gonçalo Martins disponibiliza duas casas de alojamento local, agora desocupadas devido à quebra da procura

Num dos telefonemas que recebeu, um médico, que trabalha por turnos, mostrou interesse num dos apartamentos. “Eu disse: ‘olhe, se vocês trabalham em turnos, enquanto não estão a trabalhar estão a dormir. Metam lá três turnos a dormir, a rodar, não me importo“. Um outro caso foi o de uma auxiliar de ação médica, que “ainda não sabia onde ia ser colocada”.

“Queremos proteger os que mais gostamos”: os apelos dos profissionais de saúde

São vários os apelos no mesmo grupo de Facebook de profissionais de saúde a pedirem um local onde possam ficar enquanto durar a pandemia, para evitarem contagiar os mais próximos. “O objetivo é tentar proteger os que mais gostamos e que nos são próximos, sobretudo os mais idosos, e descansar o máximo possível, nas poucas horas que vamos ter disponíveis para tal”, diz uma enfermeira.

O apelo de enfermeiras do Hospital de Abrantes

Uma outra enfermeira do Hospital de São João mora em Guimarães com os pais e o irmão. Pergunta se “alguém sabe de algum sitio disponível perto do hospital?” Já um oficial da GNR pergunta se a disponibilidade dos proprietários “é extensível para nós”. “No que toca à minha partilha, sim”, lê-se num comentário.

Numa outra publicação, mais emotiva, uma mãe, profissional de saúde, questiona-se:

“Será que devo regressar a casa após cada dia de trabalho ou, por muito difícil que possa ser para todos, devo ir dormir a algum outro lado para diminuir o risco de contágio para as minhas filhas e família?” (…)
E eis que uma amiga, não médica, com quem partilhava alguns dos meus sentires do dia, se antecipa, dizendo ela “por preocupação e porque não me sentiria bem se não te dissesse”: “acho que devias fazer mais esse esforço sobre-humano e arranjar um local para ficares alojada para evitares contagiar as meninas!” Ao que respondi “Pois, também tenho estado a pensar nisso… Mas como? Mesmo que encontre essa força e capacidade… Para onde vou? Sou um risco também para outros… Vou pagar um alojamento? O ordenado não aumenta… O do marido deve diminuir… E por quanto tempo? Enfim… Mais um discernimento difícil para estes dias… “
E eis que passado algum tempo a mesma amiga reencaminha uma msg [mensagem] sobre alguém que cedia os seus AL no Restelo para profissionais de saúde…”